sexta-feira, março 01, 2019

A DIFERENÇA ENTRE O HIPÓCRITA E O CÍNICO



Sempre que vejo algumas pessoas rotulando o outro questiono comigo se elas saberiam, ao menos, o real sentido da palavra que tentam empregar com “tanta propriedade”. Não sou lexicógrafo, mas nutro certa paixão pelo real sentido das palavras e, provavelmente, minhas implicações durante algumas discussões tenham sido exatamente por contestar a colocação equivocada de determinadas palavras, em especial: adjetivos. E, infelizmente, na maioria das vezes não se sustentaram.

Na etimologia a palavra grega hypokrités designava aquele que escondia a realidade por detrás de uma máscara. São os atores que vivem uma realidade diferente daquilo que ensinavam por meio de suas apresentações teatrais. Com o passar do tempo o hipócrita passou a ser identificado, de forma pejorativa, com aquele cujo o discurso não coadunava com a sua prática de vida, portanto a vida do hipócrita é uma verdadeira dissimulação, vive uma teatralidade. Seu fingimento consiste em se escandalizar das práticas de outrem, quando ele mesmo fez ou faz de forma pior, inclusive... São hipócritas, portanto, aqueles que fingem que não faz o que criticaram ou fingem que faz exatamente aquilo exigiram. É o abismo entre o falar e o fazer. Jesus chamou de hipócritas aquele que tentaram apontar defeitos pequenos no outro quando eles próprios detinham enormes defeitos. Os hipócritas são moralistas, mas na prática negam a moralidade. Geralmente se apegam à subjetividade.
Já os cínicos têm uma etimologia que remete a uma antiga escola de filosofia, os kynismós, eles acreditavam que deveria se viver apenas com a natureza negando bens, riquezas, fama, poder, etc...  Assim viviam de forma racional apenas negando as necessidades naturais e frívolas da alma humana. O cínico, portanto, age, de certa forma, em sentido oposto ao hipócrita, isto é, fala a verdade de maneira fria e distante, calculada e desavergonhada, com deboche e descaso.  São cínicos aqueles que esfregam a verdade na cara do outro sem nenhum remorso aparente por aquilo que foi dito, afinal é a verdade nua e crua. O cínico demonstra o cinismo quando expõe os fatos sem levar em conta o devido contexto. É o abismo entre o falar e o sentir. Jesus apontou o cinismo daqueles que exigiam que Ele cumprisse parte da Lei mosaica/farisaica, quando o contexto pedia humanidade e empatia. Os cínicos são amoralistas, mas na prática negam a amoralidade. Geralmente se apegam à objetividade.
O hipócrita opta por usar máscaras, enquanto o cínico por vendar os olhos. Eis a diferença.






sexta-feira, fevereiro 08, 2019

INTIMIDADE


Intimidade: aquilo que é íntimo, etimologicamente deriva do Latim intimus, um superlativo de in, “em, dentro”. Ou seja, estar na intimidade é quando se está dentro e se faz parte.

É a simbiose atingida quando o mundo do outro e o seu se tornam um.

É quando não existem mais roupas e nem máscaras.

É quando ambos estão nus, um diante do outro. Desnudados no corpo e na alma.

Intimidade é a capacidade adquirida de acessar a alma do outro e poder ler seus pensamentos, interpretar com precisão seus olhares.

É “ser” descortinado.

É não precisar terminar uma frase.

É morar no coração da pessoa e fazer-se morada dela.

É a ausência que não despede.

É ser conexão, ponte, caminho... é habitar naquilo que somos; é acontecer enquanto acontecemos.

Intimidade é não ficar na aparência e nem se perder na sala dos espelhos; é saber a saída dos labirintos e conseguir desfazer os nós de quem tenta disfarçar, ainda que por medo ou amor...

Intimidade é não sentir vergonha de si mesmo ou do outro — ainda que diante da nossa mortal e fétida humanidade é, portanto, a capacidade de não sentir nojo, de limpar o vômito, por exemplo, ou mesmo de ficar perto da pessoa doente.

É entender que o outro, na verdade, é quase uma extensão de você e que já não existe mais só a sua vida, pois um vive no outro.

É admitir que romper deixará um pouco de você no outro e um pouco do outro em você.

Intimidade não é o paraíso e nem o inferno, é a terceira opção.

É não debater com anjos ou demônios, mas com o humano que somos.

É saber-se "intimus", "em, dentro". Na intimidade verdadeira não existe nada fora, tudo é visível, acessível, desnudado, exposto e explícito!

Ser íntimo é saber-se inteiro na inteireza do outro que completa em si mesmo a metade nunca completa do nosso ser e do existir.






sexta-feira, janeiro 18, 2019

FECUNDOU-SE SILENTE


Era um jardim encoberto
Há muito, não mais florado
Nem de longe, nem de perto
Por seu dono: ignorado

no brilho à sua moda
o coração apagado
na fábula que acomoda
em si mesmo afogado

em seus olhos a ternura
sua imagem desvanecida
mais ao fundo a negrura
de uma poesia esquecida

a dúvida me adoecia
a inquietude o incomodava
a proibição me aborrecia
a esperança o acordava

no silêncio, o desengano
fecundava no tempo silente
o jardim não era engano
cada palavra, uma semente

perdidos em torno de um ciclo
sussurramos na hodierna missiva
eu assisto, planto, e reciclo
e a semente, sofre imersiva

tateou-me inconfessa,
embora um pouco tacanha
em duvidosa promessa
de xingarmos na montanha
na saída lenitiva
da vontade abrasiva
no consolo da alienação
em riso, nossa dimensão

e neste jardim secreto
— com decreto —
desprezado por seu proprietário
— um quase otário —
tornei-me um jardineiro
— com roteiro —
e semeei em seu solo
— um quase dolo —

como areia escoamos na ampulheta
em nossos longos dias de verão
sua imagem viva na vinheta
era apenas o ciclo de uma estação

Eis uma das verdades mais severas:
do que foi secreto por seis primaveras
O jardim não era invisível
Nem seu solo inacessível
Era seu dono quem não queria ver
E assim, com tristeza, o esconder

o inverno do medo viria
do abandono eu já sabia
mas ainda que o gelo cresça
logo, torço, que floresça

ao seu dono:
mais dano!
Por sua tristeza:
mais beleza!
às suas flores:
mais amores!
Não mais inverne:
mas governe!

diamante intocado
verdadeiro deserto
mundo inabitado
agora, desaberto
regado e colorido
para sempre florido





 (no gif, o filme: "O Jardim Secreto", 1993)