A primeira referência ao sumo sacerdote Eli é feita quando Ana, ainda estéril, vai ao santuário de Deus para falar com o Altíssimo. Ali ela encontra Eli, que era um sacerdote não apenas de visão curta, ele também tinha pouca sensibilidade para o acolhimento daqueles que vinham ao encontro de seu lugar de culto. Escorado em apenas um dos pilares daquele templo que lhe dava sustento [1:9], tentou do alto de sua posição como sacerdote [1:12], dirigir uma admoestação à Ana [1:14]. Eli poderia ter se levantado da confortável posição que seu trono lhe dava, para entender as angustias daquela mulher que chorava a ponto de apenas balbuciar [1:13]. Em vez disso preferiu usar seu momento de culto para lhe dirigir palavras de grosserias, imputando-lhe pecados aleatoriamente, de forma sortida, sem discernimento, compromisso com a verdade, empatia, acolhimento ou sentimento pastoral. Ana se defende dizendo que não é uma mulher sem caráter [1:16], como ele suponha, e ele, sem pedir desculpas, pede que ela se vá, e fala como se fosse um sacerdote que poderia chancelar as bênçãos de Deus sobre ela [1:17]. Ana, tempos depois, volta com um filho, chamado Samuel [1:25] e o oferece como um servo, Eli aceita que o jovem Samuel sirva ao Senhor debaixo de sua autoridade sacerdotal [2:11].
Samuel
não vestia a mesma “camisa” ministerial de Eli e seus filhos, Hofni e Finéias. Ele
usava uma roupa de acordo com a sua medida. [1 Sm 2:19]. Embora o sacerdote Eli
realmente estivesse com problemas de visão [3:2], ele não era inocente. Sabia do
seu erro [3:18], do de sua casa [2:23], de seu templo [2:22] e do culto de seu
povo [2:17], mas não tomava providências [3:13]. Os filhos de Eli sentiam-se
privilegiados por suas posições [2:16]; sentiam-se superiores ao povo [2:22]; e
não esperavam o processo regular, antes atropelavam as pessoas e passavam por
cima dos degraus, não respeitando as etapas que todos outros tinham se
submetido, apenas para conseguirem o que queriam [2:15-16].
Eli
acreditava que, porque Deus havia se manifestado à casa de seu pai [2:27], Deus
estaria obrigado a cumprir a promessa para servir aos seus filhos [2:29]. Eli acreditava
que Deus estava comprometido com sobrenomes de família, que Deus era “deus de
casas” e de árvores genealógicas, era “deus da hereditariedade”, um “deus
tribal”. Deus então diz a Eli que Ele não cumprirá o que prometeu [2:30], pois
não houve uma via de mão dupla na lealdade, isto é, Eli havia corrompido a
noção do cargo sacerdotal, transformando o ofício em projeto pessoal de poder.
Quando
Deus chama Samuel pela primeira vez, diferente do que a maioria das pessoas
percebem, ele responde: “Eis-me aqui” [3:4], mas o atender ao chamado é uma
atitude penúltima, a atitude última é se reportar a Eli [3:5]. Samuel
acreditava que diante de um chamado pessoal, deveria responder ao sumo sacerdote.
Samuel raciocinava que o seu chamado emanava daquela autoridade humana. Samuel
se posiciona perante Eli, que estava deitado e com a visão limitada pelo tempo
e ambiente [3:2]. E Deus ficou em silêncio. Eli era um homem que estava
acostumado a receber as pessoas no templo, abençoa-las, e devolve-las para seus
lugares [2:20]. Eli faz a mesma coisa com Samuel, lembra-o de onde veio ao manda-lo
de volta ao seu lugar, com um adendo, este deveria se colocar na mesma posição a
qual se colocava Eli, isto é, deitado [3:5]. Interessante que a história se
repete por três vezes, e em todas elas Deus prefere falar com um Samuel deitado,
mas se recusa a falar com um Samuel posicionado em pé, respondendo ao sacerdote.
Mas na terceira vez, Eli finalmente
percebeu que esta história toda não se tratava dele [3:8]. Eli repete a
orientação, Samuel deveria voltar ao seu lugar e deitar-se, mas, desta vez ele explica
para Samuel que não mais deveria tutelar Samuel e este deveria responder diretamente
a Deus [3:9]. Longe da chancela da religião hierarquizada e compartimentalizada,
Deus pôde manifestar-se a Samuel, num diálogo que conflitava com os interesses
de Eli [3:11-14]. Os olhos de Samuel se abrem, não mais apenas para as
realidades espirituais, mas também para a realidade da política ministerial,
Samuel passa a temer o autoritarismo que o cargo de Eli poderia lhe conferir
[3;15], pois já não era somente a roupa que vestia que o diferenciava de Eli e
sua casa, mas também a palavra contrária que passou a carregar em seus lábios. Eli
assedia Samuel e pede que Samuel não encubra nada do que Deus havia lhe dito [3:17].
Eli, o homem com visão obscura, queria de Samuel as coisas às claras; o homem
que encobria tantos erros, queria que Samuel não lhe encobrisse nada. Cobrava
de Samuel algo que ele nunca havia sido. Samuel, porém, contou tudo a Eli, não lhe
escondendo nada [3:18].
Mesmo com todos os avisos, Eli e seus filhos acharam que seria uma boa ideia envolver Deus em suas brigas políticas com os filisteus [4:1]. Acreditavam que o simples deslocamento dos símbolos eternos de sua religião para o confronto temporal e circunstancial iria justifica-los [4:2]. Hofni e Finéias emprestaram seu sacerdócio à guerra política, ignorando a “Lei das Guerras” que recomendava a proposta de paz [Deuteronômio 20:10]. Seu pai, Eli, sabia de tudo isso e consentia. A História aponta que Eli não tinha facilidade em reconhecer jovens lideranças que não estivessem sob o seu controle. O sacerdócio havia sido dado à família de Arão, pela linhagem de Eleazar [Números 25:11-13]. Pelas regras, Uzi, foi nomeado sumo sacerdote no Monte Gerizim. Eli era o sacerdote supervisor da casa de Itamar, um outro filho de Arão. Eli tinha uma posição dominante, homem mais velho, que oficiava como sacerdote supervisor. Ao perceber que seu poder verticalizado e influência hierárquica como sacerdote poderiam ser minados por alguém que ele fingia não existir, Eli se recusou a aceitar a autoridade de Uzi, muito mais jovem, e retirou-se do Monte Gerizim para Siló e fundou ali um novo centro religioso. Esta facciosidade política no meio do povo o enfraqueceu, tornando-os suscetíveis às investidas dos filisteus. Moisés havia predito esta divisão [Deuteronômio. 31:29]. Agora temos Eli, o homem que confundia a religião com suas pretensões políticas, acreditava que Deus também estava interessado na sua trama contra os filisteus. Eli estava à beira do caminho [Lucas 8:12] quando recebeu a notícia. Todas aquelas atitudes puseram um fim a continuidade do ministério de sua casa [1 Samuel 4:17]. Eli teve um ministério de quarenta anos. Mas encerrava-se ali, quase na porta, quase cego e quase no caminho:
- envelhecido
e profeticamente com o ministério anacrônico, pois estava mais envolvido com a
ordem de seu tempo do que com o Kairós de Deus [1 Samuel 2:35];
- gordo
e profeticamente com o ministério pesado, pois carregava consigo o peso de seu
autoritarismo grosseiro [1 Samuel 1:14] e hierarquia verticalizada,
representando anos de privilégios de sua classe [2:19];
- fora
de sua cadeira e profeticamente com o ministério destronado, pois as suas influências,
isto é, seus braços não mais marionetariam o povo [ 1 Samuel 2:31]. A primeira
referência a Eli o mostra sentado na cadeira [1:9] e sua história termina com
ele fora dela; e
- caído para trás e profeticamente com o ministério removido, pois Deus chamou Samuel antes que a última lâmpada do candeeiro de Israel se apagasse [1 Samuel 3:3], conforme Jesus diz ao pastor de Éfeso, que também tinha caído para trás e estava prestes a ser removido: caístes, lembra-te e arrepende-te e volta ao que foi antes, pois venho a ti e moverei do seu lugar o teu candeeiro [apocalipse 2:4-5].