Se eu deixasse hoje a existência,
sei que deixaria memórias também,
mas não a saudade.
Sei que o plano crítico se dissolveria mais rápido que a putrefação de meu tecido;
e grifar-se-iam todas as qualidades minhas.
E, então, ouviria na morte o que não ouvi em vida.
E receberia, enfim, no além, aquilo que dei no aquém.
Se eu fechasse hoje os olhos para luz,
sei que deixaria de brilhar também,
mas não mais teria que lidar com a escuridão em mim.
Sei que apagar-se-iam os holofotes que destacam os percalços meus;
e, então, as velas seriam acesas em sacro vagar.
E eu seria visto, enfim, pelo melhor que dei, não pelo pior que vivi.
Se hoje eu cerrasse as cortinas do palco da vida,
sei que perderia o protagonismo também,
mas não teria mais que atuar.
Sei que as vaias diluir-se-iam ante os aplausos de quem apenas percebe-se ao fim.
E, então, eu saberia o que sabem, mas não o fazem saber.
E eu compreenderia que não importa o que recebi ou dei, mas apenas o que vivi.
Se hoje eu abandonasse o leme do tempo,
sei que perderia a rota também,
mas não teria mais que lutar contra ventos que não se cansam.
Sei que os naufrágios que carrego se tornariam relíquias de compaixão;
e, então, o mar seria testemunha de meu fardo.
E eu repousaria, enfim, no silêncio das ondas,
sem ter de explicar porque parti nem para onde fui.
Se eu deitasse a pena que escreve meus dias,
sei que perderia o enredo também,
mas não teria mais que revisar as falhas da narrativa.
Sei que os capítulos amargos seriam folheados com ternura;
e, então, o leitor descobriria que até os erros sustentam a história.
E eu compreenderia, enfim, que viver não é ser perfeito,
mas permanecer escrito, mesmo quando não lido.
Se hoje eu apagasse a chama que me sustenta,
sei que perderia o calor também,
mas não sentiria mais o frio da noite que me habita.
Sei que a escuridão me cobriria com seu manto sem voz;
e, então, os olhos que não me viram clareariam tarde demais.
E eu seria lembrado, enfim, não pelo fim que escolhi,
mas pelo lampejo breve que um dia fui.
...

Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente aqui....