sexta-feira, outubro 22, 2021

SE TIVER QUE PARTIR

Se eu deixasse hoje a existência,

sei que deixaria memórias também,

mas não a saudade.

Sei que o plano crítico se dissolveria mais rápido que a putrefação de meu tecido;

e grifar-se-iam todas as qualidades minhas.

E, então, ouviria na morte o que não ouvi em vida.

E receberia, enfim, no além, aquilo que dei no aquém.


Se eu fechasse hoje os olhos para luz,

sei que deixaria de brilhar também,

mas não mais teria que lidar com a escuridão em mim.

Sei que apagar-se-iam os holofotes que destacam os percalços meus;

e, então, as velas seriam acesas em sacro vagar.

E eu seria visto, enfim, pelo melhor que dei, não pelo pior que vivi.


Se hoje eu cerrasse as cortinas do palco da vida,

sei que perderia o protagonismo também,

mas não teria mais que atuar.

Sei que as vaias diluir-se-iam ante os aplausos de quem apenas percebe-se ao fim.

E, então, eu saberia o que sabem, mas não o fazem saber.

E eu compreenderia que não importa o que recebi ou dei, mas apenas o que vivi.


Se hoje eu abandonasse o leme do tempo,

sei que perderia a rota também,

mas não teria mais que lutar contra ventos que não se cansam.

Sei que os naufrágios que carrego se tornariam relíquias de compaixão;

e, então, o mar seria testemunha de meu fardo.

E eu repousaria, enfim, no silêncio das ondas,

sem ter de explicar porque parti nem para onde fui.


Se eu deitasse a  pena que escreve meus dias,

sei que perderia o enredo também,

mas não teria mais que revisar as falhas da narrativa.

Sei que os capítulos amargos seriam folheados com ternura;

e, então, o leitor descobriria que até os erros sustentam a história.

E eu compreenderia, enfim, que viver não é ser perfeito,

mas permanecer escrito, mesmo quando não lido.


Se hoje eu apagasse a chama que me sustenta,

sei que perderia o calor também,

mas não sentiria mais o frio da noite que me habita.

Sei que a escuridão me cobriria com seu manto sem voz;

e, então, os olhos que não me viram clareariam tarde demais.

E eu seria lembrado, enfim, não pelo fim que escolhi,

mas pelo lampejo breve que um dia fui.


...









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