segunda-feira, setembro 22, 2025

David Gilmour — Live at the Circus Maximus, Rome | RESENHA

Testamento em Roma: A Arquitetura Sonora de David Gilmour no Circus Maximus





Neste domingo, 21/09, sentei exatamente no miolo do IMAX, o sweet spot, e a tecnologia Dolby Atmos tratou de transformar um concerto em arquitetura sensorial. O filme abre com David Gilmour lembrando ao mundo, com ironia doce e precisão absoluta, que é “um fucking legend”. A partir daí, tudo converge: a imagem monumental, a projeção que não estoura highlights e preserva grão e textura e, sobretudo, um desenho de som tridimensional que dá altura real às coisas. Não é só estéreo largo, há planos, profundidade de campo acústica, objetos sonoros escalando o teto, delays que orbitam, reverbs que pairam como véus sobre a plateia. Senti o ataque da palheta e, um segundo depois, a cauda do plate reverb suspensa acima de mim; ouvi harmônicos viajando pelos canais de altura e retornando ao palco como se fossem matéria palpável. Foram 22 faixas, duas horas e meia de música que respira, cresce e, em vários momentos, simplesmente corta as pernas no melhor sentido.

A narrativa é construída com astúcia. “5 A.M.”, quase vinheta de timbre e intenção, prepara a paleta de cores do set. “Black Cat” e “Luck and Strange” fixam o clima meditativo do álbum novo, um disco nascido da reflexão pandêmica sobre a finitude e a fragilidade da vida. Então, a ponte se abre para o cânone: “Breathe (In the Air)” e “Time” entram com voicings mais arejados, a bateria deixando o ar circular e os relógios texturizados numa espacialidade que não grita, envolve. “Fat Old Sun” vem pastoral, como se fosse um campo aberto filmado ao amanhecer. “Marooned”, raridade no palco, ergue uma catedral elétrica: sustain quase vocal, feedback controlado na borda do acoplamento, pads que expandem o campo harmônico sem confundir o grave. “Wish You Were Here” volta a pele para o osso, violões brilhando na faixa dos 6–8 kHz, voz na cara e um coro espontâneo da sala que o mix respeita como textura, não como ruído.

O miolo do concerto equilibra introspecção e catarse com precisão cirúrgica. “Vita Brevis” funciona como interlúdio respirado. “Between Two Points”, com Romany Gilmour, pousa no meio do IMAX como uma câmara de vidro: voz límpida em tessitura média, harpa tratada com leve compressão paralela, teclas que riscam arabescos sem atropelar o silêncio. “High Hopes” reintroduz o sino como personagem rítmico, o pedal steel como lâmina de luz. “Sorrow” chega como muralha sônica, fuzz empurrando válvulas até o limite, mas com o médio limpo o bastante para a muralha ter desenho, não só massa. “The Piper’s Call” amarra a gramática nova de Luck and Strange ao fraseado clássico de Gilmour, grooves binários com bordados melódicos no teclado, a guitarra falando com a parcimônia de quem sabe que um bend milimétrico vale mais do que trinta notas velocíssimas.

E então acontece o momento que eu não esperava: “A Great Day for Freedom”: o luto das promessas não cumpridas do pós-muro, a ressaca de uma esperança que não virou plenitude. No palco, duas guitarras fazem contracanto de manual, às vezes em paralelismo oblíquo, e quando convergem viram segunda voz uma da outra. É uma conversa entre iguais, uma simbiose técnica e afetiva que me fez chorar. Uma das coisas mais lindas que já ouvi. Ali, o virtuosismo não está em correr; está em sustentar a nota até que o sentido apareça. É elegia, é testamento, é aquele instante em que a música deixa de ser performance e se torna rito. E não é difícil ouvir, por baixo de tudo, a ideia de despedida, um artista de 79 anos escrevendo com som aquilo que as palavras não dão conta.

Daí em diante, o arco dramatúrgico escala. “In Any Tongue” ressurge como lamento poliglota contra a barbárie, a montagem de vozes meticulosamente distribuída no espaço. “The Great Gig in the Sky” abandona a catarse solitária e vira tapeçaria coral, Romany e mais três cantoras costurando timbres distintos até um clímax harmônico de levantar a nuca da poltrona. “A Boat Lies Waiting”, o meu ouvido sempre volta ao fôlego que esta música pede, vem com a delicadeza de barcarola para piano e respiros. “Coming Back to Life” traz o agradecimento explícito a Polly Samson, gesto que recoloca a autoria em seu lugar, parceria criativa injustamente atacada por torcida organizada de saudosistas de Roger Waters, mas que aqui aparece com nitidez e gratidão. E as novas, “Dark and Velvet Nights”, “Sings” e “Scattered”, mostram o truque difícil, dialogar com a memória sem repetir a fórmula, usando modos dórico e eólio, cadências suspensas e voicings abertos que carregam DNA floydiano sem virar pastiche.

O final é liturgia. “Comfortably Numb” encerra com solo cantabile, delays em cascata e um teto de luz volumétrica em 3D projetado de fora do palco, desenhando geometrias sobre a plateia, uma extensão ótica do que o Atmos faz no domínio sonoro. Senti a guitarra atravessar o espaço físico antes de chegar ao peito, como se a nota curvasse o ar. Saí do cinema com a certeza de que tanto o álbum quanto o show não apenas pensam a morte, encenam um adeus possível. Luck and Strange nasce de um período em que todos fomos obrigados a encarar finitude e fragilidade, o filme capta esse estado com honestidade e grandeza. A sensação não é de fim amargo, mas de passagem, uma carta final escrita em linguagem musical, capaz de revisitar o passado, agradecer o presente e, quem sabe, acenar para um silêncio que também é forma de beleza.

E porque sou fã desde sempre, discografia completa, shows oficiais e até bootlegs obscuros, preciso registrar a medida da surpresa. Já vi P•U•L•S•E, Remember That Night, Live in Gdańsk, Pompeii recente, e ainda assim a noite no Circo Máximo filmada para IMAX me pareceu a síntese mais poderosa de tudo o que Gilmour é no palco. Não por ser maior, mas por ser mais íntegra, banda respirando junto, mix que respeita o silêncio como parte da música, fotografia que abraça o crepúsculo romano sem flertar com o kitsch. E uma curadoria que costura décadas sem pedir desculpas, como convém a quem já não precisa provar nada.

No plano técnico, há escolhas que dizem muito. Headroom generoso, transientes preservados, grave firme sem inflar. Guitarras que ocupam o médio-agudo sem agredir. Teclados que ampliam a largura sem apagar o corpo do baixo. Bateria com pratos de cauda controlada, abrindo só quando o clímax pede. O Atmos serve à música, não o contrário. Quando as alturas entram, entram para que a emoção ganhe contorno, não para mostrar efeito. É a velha lição de produção: tirar o que sobra até que o essencial brilhe. E o essencial, aqui, é uma assinatura melódica reconhecível em meio compasso, aquela combinação de sustain, micro-bends temperados e vibrato redondo que só ele tem.

Se havia alguma dúvida sobre a vitalidade de Gilmour aos quase 80, o filme a dissipa. Há ternura na economia de gestos, há autoridade na economia de notas. Há grandeza no reconhecimento público a Polly, há generosidade na entrega de palco à Romany, há coragem em dizer, com um sorriso e um palavrão bem colocado, que a lenda está viva e consciente do próprio tamanho. E, ainda assim, há humildade suficiente para que a música fale mais alto que o mito. Saí do IMAX com olhos marejados e uma certeza difícil de explicar: poucas vezes um artista me ofereceu um adeus tão sereno, tão bonito, tão cheio de vida, ao falar da morte.

Se isto for mesmo um aceno final, é do tipo que dignifica toda uma história. E se não for, tudo bem. Fica como uma aula definitiva de como usar espaço, tempo e timbre para organizar sentimentos intraduzíveis. Entre a pedra do Circo Máximo e a escuridão climática da sala, aprendi de novo que um grande concerto não é a soma de músicas, câmeras e canais, é um pacto. No domingo, no meio exato da sala, com luzes em 3D por sobre a cabeça e a guitarra cortando o ar, eu assinei esse pacto com lágrimas nos olhos.

segunda-feira, setembro 15, 2025

ODE À NOSSA FÉ

I. A Natureza de Deus

1. Ó Logos Inefável, Arquétipo de toda a Criação, Tu, cuja essência habita o recôndito da eternidade e cuja glória numinosa transcende a mais locupleta das compreensões humanas. Em Ti não há aporia nem contingência, mas a Verdade Absoluta e necessária, a realidade asseitosa que a tudo fundamenta.

2. Declaramos a Tua unicidade, ó Eterno Absoluto, Axioma Imarcesível, pois não és uma emanação demiúrgica entre outras, um deus em um panteão de potestades finitas. Tu te revelas não em opúsculos de sabedoria humana, mas em uma Unicidade Perfeita e indivisível, manifestando-Te como o Pai, a Fonte numenal, o Princípio incriado de quem emana todo o ser; depois como Filho, o Verbo Hipostasiado manifestado em carne, de pureza ebúrnea, a perfeita teofania do Amor Divino , sendo Tu o resplendor exato de Sua glória e o único ícone visível de Sua essência invisível; e agora como o Espírito Santo, o Sopro Vivificante, o influxo paracletiano que nos impede de sermos meros seres nefelibatas, perdidos no solipsismo de nossas vãs cogitações.

II. A Doutrina do Pecado

3. Meditamos sobre a catástrofe primordial, pois o pecado, essa herança do primeiro filaucioso, Adão, se nos tornou uma nódoa ontológica. Foi a fratura da aliança original, uma deliberada insurreição que introduziu a lógica anômica da morte na perfeita harmonia do Éden, alienando-nos da Tua presença imediata.

4. E, como corolário dessa Queda, contemplamos a depravação radical que se nos tornou natureza: uma vontade cativa, uma mente entenebrecida e uma inclinação perpétua para a iniquidade. Estamos, por nós mesmos, em um estado de miséria espiritual, desprovidos de mérito e incapazes de gerar o ato de justiça que nos reconcilie Contigo.

III. A Obra da Redenção em Cristo

5. Mas Tu, em Teu amor que jamais decide preterir o contrito, e em Tua justiça, que é o cânone absoluto que a tudo afere e que há de vergastar a soberba, providenciaste o resgate. E este não se deu por um ímpeto de um ab irato, mas pela prolepse de um decreto eterno, estabelecido antes da fundação do mundo.

6. E entendemos o Teu Amor Incondicional não como uma tolerância passiva à nossa corrupção, mas como uma ação soteriológica e regeneradora. É um amor que não espera nossa melhora para agir, mas que age para nos transformar, executando a justificação que nos declara justos e iniciando a santificação que, progressivamente, nos torna justos.

7. A Tua Justiça, portanto, não é meramente punitiva, mas, antes de tudo, retributiva e retificadora. É o Teu compromisso inabalável com a Tua própria retidão. Onde há transgressão, a Tua santidade exige uma expiação, não por capricho, mas porque a Tua natureza é infungível e não pode coexistir com o mal. A Cruz foi o altar onde a Tua justiça e o Teu amor foram plenamente satisfeitos.

8. Na cruz, ó Cristo, se deu o grande ponto de inflexão, a cesura que divide a história. Ali, a Morte, essa usurpadora da existência, foi exprobada e despojada de seu poder; ali, o Inferno, a antítese do Teu Reino, foi vencido. Teu sacrifício não foi o gesto obsequioso de um ser menor buscando aplacar uma divindade irascível, mas a afirmação soberana do Teu senhorio, o ato kenótico onde a Graça e a Justiça convergiram em perfeita unidade.

9. Pela Tua ressurreição, a estrutura da esperança foi restaurada. Foste a manifestação teândrica Perfeita, o Deus-Homem, resolvendo a antinomia que nos afligia. A vitória sobre o sepulcro não foi mera alegoria, mas a manifestação empírica da Tua divindade, a garantia factual e irrefutável da nossa própria futura ressurreição em glória.

10. A vitória sobre a Morte e o Inferno é a consequência lógica dessa premissa, selada pelas Tuas próprias palavras de comissionamento antes de ascenderes aos céus: 

"Todo o poder Me foi dado nos shamayim (Céus) e na terra. Ide portanto, e fazei talmidim (discípulos) de todas as nações, realizando-lhes a mikvah (batismo) em Meu Nome. Lhes ensinando a shomer (observar) todas as coisas que Eu vos tenho ordenado, e Eu estou convosco sempre, até a consumação do olam hazeh (desta era). Amém."

E por esta exaltação, compreendemos que não habitas em um lugar geográfico à direita de um trono, como um ser finito, mas que Tu mesmo és a Destra, o Braço do Senhor estendido em poder e salvação; a personificação da glória e da autoridade do Deus invisível, reinando não como segundo em um duunvirato, mas como o próprio Soberano em Seu Templo glorificado, que é o Teu Corpo.

IV. A Dispensação do Espírito Santo

11. E agora, por Tua dispensação, o Espírito Santo, o Paráclito, em nós habita como selo da nossa filiação. Por Ele, nosso entendimento é iluminado e nos é dado aquiescer à Tua vontade, abandonando os sofismas do mundo para abraçar a Tua revelação, não como o fariseu pudibundo que se aferra à Lei de modo servil, mas com a singeleza de quem foi regenerado pela Tua graça infusa.

12. Por esse mesmo Espírito, os dons são distribuídos à Tua Igreja, que é o Teu corpo místico na Terra. A um é dada a palavra da sabedoria, para ser o exegeta dos Teus mistérios; a outro, a palavra da ciência, para ser o apologeta da Tua verdade; a um terceiro, a fé, essa virtude dianoética que move o incognoscível; em seguida, os dons de curar, como manifestação da Tua misericórdia reparadora sobre as mazelas do corpo; e a operação de milagres, como intervenções soberanas que alteram o curso da natureza; a outro, a profecia, a proclamação da Tua vontade soberana; a outro, o discernimento de espíritos, a faculdade de perscrutar a gênese de toda manifestação espiritual; a um, a variedade de línguas, a enunciação de mistérios em elocuções que transcendem o vernáculo; e, finalmente, a outro, a capacidade para a sua interpretação, a decodificação da mensagem celestial para a edificação comunitária.

13. E por Ele também floresce em nós, não como frutos dispersos, mas como um único e multifacetado Fruto, o corolário da nossa nova natureza e a evidência empírica da nossa santificação: o amor (ágape), que é o vínculo da perfeição e a disposição análoga ao próprio ser de Deus; o gozo (chara), não uma alegria circunstancial, mas um contentamento soteriológico que subsiste para além da contingência; a paz (eirene), a harmonia ontológica com o Criador que excede todo entendimento; a longanimidade (makrothymia), a perseverança serena e a clemência paciente ante a provocação; a benignidade (chrestotes), a doçura de caráter e a bondade em ação para com o próximo; a bondade (agathosune), a retidão moral intrínseca e o zelo pela excelência; a fé (pistis), que aqui se manifesta como fidelidade e lealdade pactual; a mansidão (prautes), a força sob controle e a submissão humilde à vontade divina; e, por fim, a temperança (egkrateia), o domínio próprio e o autogoverno ascético do espírito sobre as paixões da carne.

V. A Consumação dos Séculos

14. Aguardamos, pois, com reverente expectativa, a parusia, a consumação da Tua obra, sabendo que a Tua perfeita clareza exige que toda a dissimulação seja desfeita e toda obra, palavra e intenção sejam trazidas à luz através do Teu completo e perfeito plano judicativo.

15. Reconhecemos que o fundamento de todo o Teu juízo redentor já foi estabelecido: o primeiro e mais crucial julgamento, o dos Pecados na Cruz de Cristo, onde o Cordeiro de Deus sofreu a punição vicária, e a dívida que nos era contrária foi plenamente solvida, permitindo-nos aguardar os juízos futuros não com terror, mas com a sóbria confiança dos que já foram justificados.

16. E, a partir desse ato propiciatório, aguardamos a sequência da Tua justiça perfeita: o Tribunal de Cristo, para a avaliação e galardão das obras dos salvos; o Julgamento de Israel, para a purificação do Teu povo terreno; o Julgamento das Nações, para aferir a misericórdia praticada; o Julgamento dos Anjos Caídos, quando a rebelião primeva receberá sua sentença final; o Julgamento de Satanás, o arqui-enganador; e, por fim, o Juízo Final do Grande Trono Branco, o epílogo da história humana, quando os ímpios de todas as eras serão julgados, e a verdade não poderá ser obtida por quem tenta obreptar com astúcia.

17. A Ressurreição é, para nós, a proposição central da nossa fé. Assim como Cristo, o Primogênito dentre os mortos, foi reavivado em corpo glorificado, também nós, a Ele unidos, seremos transfigurados. Este corpo corruptível, este invólucro mortal, se revestirá da incorruptibilidade, tornando-se um templo definitivo para a Tua glória.

18. Então, se descortinará o Milênio, aquele éon de paz e justiça sobre a Terra, um tempo em que o governo teocrático de Cristo será a realidade universal, e toda a dissonância será silenciada sob a regência do Rei dos reis. Será o prelúdio da eternidade.

19. E, para além do tempo, a Vida Eterna, o Summum Bonum, a comunhão perpétua. Não um estado de êxtase estático, mas de adoração e serviço dinâmicos, onde contemplaremos a Tua face na visão beatífica e compreenderemos as profundezas do Teu ser, pois Tu és inesgotável em glória e majestade.

VI. Doxologia Final

20. A Ti, portanto, ó Soberano do Universo, Autor e Consumador da nossa fé; a Ti que decretas, crias, redimes e sustentas a história segundo o Teu beneplácito; a Ti, Eterno cujo Evangelho revelado é antipútrido, e que não conhece princípio nem fim, seja a doxologia de toda a criação, a honra, a glória e o domínio. Altissimamente, e para todo o sempre. Amém.



Artist William Blake (1757–1827)  | The Ancient of Days


segunda-feira, maio 05, 2025

O dia em que rejeitei o cargo de evangelista

A minha avó, com meus dois ou três anos de idade, sonhou que eu reconhecia a Jesus Cristo como meu único e suficiente salvador, e me fez o apelo. Eu reconheci. Aos quatro anos de idade, antes de aprender a amarrar os sapatos, já tinha aprendido a dobrar os joelhos para orar.

A fé não me chegou pelos discursos inflamados, mas pelo sussurro insistente do Espírito, que moldava meu coração em silêncio, como o oleiro molda o barro.

A verdadeira fé não escolhe idade; escolhe corações.

Após a passagem posterior para outra igreja, saindo da Batista (que infelizmente fechou) e indo aos 13 anos para a Assembleia de Deus, migrei para o pentecostalismo que, embora sincero e marginalizado, era legalista e, por vezes, profundamente ignorante.

Aos 16 anos fui para uma igreja menor, onde o zelo sincero se confundia com rigores autoritários que sufocavam a graça. Foi então que me ofereceram o título de evangelista. Alegavam que eu tinha o conhecimento e o envolvimento necessários para aquilo.

Contudo, não senti nenhuma exaltação. Senti o silêncio da parte do Espírito de Deus. Não aquele silêncio que pesa como ausência, mas aquele que protege como escudo. Um silêncio que dizia, sem palavras:

— "Filho, não te apresses em vestir mantos que Eu não costurei."

O silêncio de Deus é, muitas vezes, sua forma mais eloquente de falar.

Recusei. Não por arrogância ou falsa humildade, mas porque sabia, desde cedo, que a unção verdadeira não vem do toque de mãos humanas nem de certificados redigidos por secretários em porões com acordos, intenções e segredos, por vezes, obscuros. A verdadeira unção vem do derramar invisível do céu. Lembrava que Davi fora ungido ainda moço, entre irmãos que zombavam, e que Timóteo precisara ouvir: "Ninguém despreze a tua mocidade" (1Tm 4:12).

Sabia também que Saul, coroado aos olhos dos homens, definhou porque o Espírito já o havia deixado. E temi me antecipar nos degraus sagrados, tomando atalhos e sendo contado entre os que carregam cetros ocos e coroas banhadas em ouro de tolo.

É mais fácil conquistar títulos que caráter.

A tragédia irônica não foi minha recusa, mas o que vi depois. Vi homens que mal sabiam distinguir entre "divórcio" e "repúdio" e, assim, condenavam suas ovelhas por desconhecimento histórico-contextual das Escrituras. Vi pessoas recebendo títulos por amizade, parentela, casamentos, dízimos e ofertas maiores. Vi indivíduos neófitos se levantando para ensinar, sem terem passado tempo suficiente sentados para aprender.

Havia, porém, aqueles poucos, cujas mãos cheiravam ao óleo de enfermos e não ao incenso da vaidade, lembrando-me que, mesmo em sistemas falhos, Deus conserva remanescentes.

Vi mulheres que, na pressa pelo reconhecimento e sem nenhum princípio de submissão (arrepiam até o cabelo quando ouvem essa palavra), inventaram cargos como "presbíteras", lexicalmente equivocados (o correto seria episcopisas), frequentemente esquecendo que o serviço floresce melhor no solo da humildade. Em contraste, recordo-me com carinho daquelas senhoras anônimas do círculo de oração, que não tinham um outdoor no peito, mas cujas vozes, ao orarem ou profetizarem, traziam respostas imediatas dos céus pela intimidade que cultivavam com Deus.

Existem credenciais que apenas os céus podem emitir.

E eu, que aos 14 anos já sabia o que era travar guerras espirituais e lutar com demônios reais, via aqueles títulos cintilando como caixões dourados: belos por fora, ocos por dentro.

Enquanto muitos corriam atrás de certificados brilhantes nas paredes, eu me agarrava às credenciais que só os anjos registram: noites em que o chão do quarto ou o meio do mato se misturavam com lágrimas e brasas acesas de orações roucas.

E compreendi — sem manual, sem seminário — que o verdadeiro chamado é como o vento descrito por Jesus: "O vento sopra onde quer; ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai" (Jo 3:8).

O chamado que vem de Deus não precisa de autorização humana. Não se escreve em pergaminhos, mas nas cicatrizes que são como as impressões digitais da alma.

O céu reconhece mais marcas que medalhas.

Hoje, quando vejo "doutores em divindade" tropeçando nos próprios títulos, recordo com gratidão aquela manhã em que, aos 17 anos, recusei o manto que não era meu.

E entendo que, no Reino de Jesus Cristo, Ele ensinou sobretudo a importância da função e do serviço, mostrando que títulos humanos podem ser como a lanterna de Judas: iluminam o caminho apenas para confirmar a própria vaidade e o abismo egótico.

No dia em que todos os títulos caírem como folhas secas diante do trono, serão essas marcas — e não os crachás — que brilharão na eternidade, resistindo ao fogo da provação.


domingo, maio 04, 2025

"Adolescência", da Netflix | Capítulo 3 - Laudos Psicológicos Enviesados: Quando a Perícia Compromete a Justiça

 


Acabamos de assistir – eu e Sand – à minissérie Adolescência da Netflix, um artefato audiovisual que, tal qual Black Mirror, Dark, Stranger Things ou Round 6, crava seus faróis nas fissuras de uma sociedade que prefere o conforto da penumbra à luz incômoda da verdade. Nesse ponto, a série merece aplausos. Enquanto as redes sociais regurgitam o lugar-comum – “Pais, vigiem o que seus filhos consomem” –, eu, advogado, me aventuro no terreno pantanoso da psicologia. Não como especialista, mas como leigo movido por perplexidade ética e um desejo ardente de compreender o que vejo. Aqui, o risco de errar é calculado – não é minha área –, mas a necessidade de falar é inevitável.

A Cena: Um Epitáfio Arquitetônico

O terceiro episódio nos aprisiona numa sala que é menos consultório e mais masmorra: um retângulo pálido, com janelas gradeadas que gritam confinamento, banhado por lâmpadas opacas que zumbem como moscas sobre um cadáver jus-sócio-político – e, ao fim da série, psicojus-sócio-político. É o epitáfio arquitetônico de uma psicologia que abandonou a dúvida – esse cão selvagem que late à porta da ciência – pela segurança de um dogma gravado em pedra. Sob uma luz fria que corta como bisturi, um adolescente, crisálida de raiva e angústia, encara uma psicóloga empertigada, de blusa verde-petróleo, rígida como lápide de cemitério diante dele, embora, por dentro, ela se abale cada vez mais. Ele traz perguntas que não cabem em dicionários; ela, respostas que dispensam interrogações. Não é consulta, é liturgia – um auto de fé secular onde a chama da ideologia consome a escuta.

Um dos problemas fundamentais na atuação dessa psicóloga é a falta de clareza sobre seu papel. Ela não explica ao adolescente que está conduzindo uma avaliação pericial, com um número limitado de sessões (média de 8, como apontado por especialistas), e não um processo terapêutico sem fim definido. Essa indefinição gera confusão: o jovem busca vínculo, enquanto ela, sob pressão para concluir um laudo – possivelmente já tendo extrapolado o número usual de encontros, como sugerido pelo comentário inicial do policial sobre outro perito que concluiu mais rápido –, foca em extrair respostas que atendam a um prazo. Essa falha compromete a qualidade técnica da avaliação e cria expectativas equivocadas no adolescente, que acredita estar em um espaço de acolhimento quando, na verdade, é um palco de julgamento.

Pausávamos a cada poucos minutos. Sand, psicopedagoga, tecia notas técnicas com a precisão de quem domina o ofício, trazendo uma visão que divergia da minha; eu, por outro lado, recolhia estilhaços éticos, tentando entender como uma profissão que se proclama ciência – e o é – pode curvar-se tão facilmente ao sectarismo. Faço o paralelo com o Direito, retalhado pelo legislativo para servir ao mesmo panfletarismo, onde a imparcialidade é sacrificada em nome de agendas preconcebidas.

A Psicóloga: Sentinela de Veredictos

A sessão nasce sob o signo do vício. A psicóloga assume uma postura marcadamente inquisitiva, mais próxima de uma promotora que de uma profissional de saúde mental. Antes que o garoto tenha chance de se manifestar, ela lança um arsenal de diagnósticos implícitos: masculinidade tóxica, ausência paterna, patriarcado como vilão, misoginia latente – clichês acadêmicos que soam como slogans de panfleto, não como frutos de análise rigorosa. Onde está o silêncio winnicottiano, esse espaço sagrado que acolhe a angústia sem julgá-la? Não há. Em seu lugar, ergue-se um catecismo inquisitorial, onde o paciente não é sujeito, mas réu – uma peça a ser encaixada na tese pré-fabricada de quem já sabe tudo antes de ouvir. Ela está ali para confirmar sua narrativa, não para explorar a complexidade do jovem à sua frente.

Escutar é arriscar-se ao desconhecido; ditar é algemar o outro ao seu script.

Quando o adolescente confessa sentir-se feio – uma ferida aberta por anos de bullying –, ela interpreta como “vitimismo” ou “manipulação”. Diante de alguém que mal disfarça a dor, misturando confissões com máscaras de dureza (porque, no mundo dele, a dor de um homem é fraqueza, um crime – assistam The Wall), ela permanece cega. Ele chuta a cadeira, e ela, em vez de reconhecer o transbordo de uma alma encurralada sob pressão, vê “agressividade inata” – a prova da ferocidade testosterônica que já esperava encontrar. Ignora Winnicott, que em O Brincar e a Realidade ensina que o holding é o útero onde angústias primitivas encontram repouso. Aqui, o divã não acolhe; executa.

Quando a clínica se curva à ideologia, o divã vira cadafalso.

O Diálogo: Espelhos Quebrados e Violência Silenciosa

Num lampejo de lucidez, o garoto desnuda o jogo:

“Você quer saber o meu entendimento sobre o seu entendimento do meu entendimento, não é?”

Um soco retórico, a denúncia de quem percebe que não há escuta, apenas um espelho torto onde ela projeta suas convicções. Ao chamá-la de “gata”, ele não flerta – busca, num gesto ancestral, espelhar-se no outro para sobreviver à própria inadequação. Ela poderia ter baixado a guarda, oferecido um fiapo de humanidade: “Eu também já me senti fora de lugar, até entender que a beleza é menos espelho e mais aceitação.” Mas não. Permanece uma muralha de protocolos; seu silêncio não é neutralidade, mas violência epistemológica – um cinismo glacial diante de um jovem à deriva, agarrado à última boia antes do naufrágio.

A relação “Eu-Isso” substitui o “Eu-Tu” de Buber, essencial à aliança terapêutica, mesmo em contexto pericial. Ele ainda tenta:

“Você não deveria me dizer que minha baixa autoestima me faz mal?”

Ingenuidade pungente. Mal sabe que a missão dela não é curar, mas carimbar um laudo de culpabilidade para o juiz – um relatório que prove que ele “entende o que fez” o bastante para ser condenado. A psicologia, que deveria ser arte do encontro, reduz-se a serviçal do tribunal. É verdade que provocar reações pode ser uma estratégia legítima em avaliações periciais, como apontado por minha amiga psicóloga, mas a psicóloga da série concentra todas as táticas em um único atendimento, sob pressão de prazo, revelando despreparo. Ela começa com perguntas fúteis, que não levam a lugar nenhum, e depois é direta demais, quase agressiva, manipulando o jovem para extrair respostas que confirmem sua tese.

Toda certeza que chega antes da pergunta já é meio caminho da injustiça.

No Brasil, a Resolução CFP 08/2010 exige que o psicólogo evite interferências que prejudiquem a autonomia técnico-ética, mas aqui ela falha. Suas reações de medo e desconforto diante do jovem revelam despreparo técnico para contextos forenses complexos, permitindo que ele perceba estar no controle da sessão em vários momentos. Isso viola o Código de Ética, que demanda capacitação adequada. O chocolate oferecido? Uma tática manipuladora, não um gesto de acolhimento – um agrado calculado para extrair falas, nunca para ouvir. Mesmo que estratégias como essa possam ser válidas, sua aplicação aqui é desastrosa, reforçando a sensação de que o garoto foi usado e descartado.

As Engrenagens da Clínica Panfletária

Quatro pilares sustentam o erro dessa abordagem:

  1. Pré-julgamento: Ela chega com a tese pronta, violando o Artigo 2º do Código de Ética, que exige respeito à alteridade. O garoto não é sujeito; é uma peça num tabuleiro montado.
  2. Tradução Forçada: Cada palavra dele é torcida para caber no molde ideológico – uma semiótica deturpada que sufoca a verdade em nome da narrativa.
  3. Laudo-Manifesto: O relatório não serve ao juiz, mas à agenda militante – um panfleto disfarçado de ciência, onde a transparência de objetivos (Artigo 1º, alínea g) é uma lembrança distante.
  4. Abandono Ético: Após devorar suas vulnerabilidades, ela sentencia: “Não voltarei.” Viola o Princípio IV, que proíbe rupturas abruptas, mesmo em avaliações periciais, onde a dignidade do avaliado deve ser preservada. Quem se importa se ele nunca mais confiará em alguém? A cena do garoto chorando é como um cirurgião abandonando o paciente aberto na mesa – não com a carne exposta, mas com a alma.

O desfecho – o garoto em pranto, a terapeuta impassível – é o naufrágio da escuta. Freud, em Luto e Melancolia, alertava que a dor não elaborada gera feridas narcísicas. Aqui, vemos uma ferida civilizacional: o diálogo substituído pelo monólogo catequizante. Em Lacan, o setting analítico seria o espaço do “desejo de saber do outro”; aqui, ele desmorona sem suturas. A conduta dela infringe o Código de Ética, que exige respeito à dignidade e integridade do ser humano, mesmo em contextos de avaliação.

A Realidade Além da Ficção

Não é só roteiro. O Brasil fora da tela ecoa esse colapso. Dados do CNJ (2024) mostram que 63% dos laudos de família carregam viés de gênero sem embasamento; o IPEA (2023) revela tipificação automática de feminicídio em 72% dos casos antes da investigação. O Censo CFP (2023) aponta que 41% dos cursos de psicologia injetam disciplinas de viés político não-científico, enquanto uma pesquisa da USP (2024) escancara que 29% dos profissionais ajustam diagnósticos a agendas sociais. A Resolução CFP 31/2022 clama por neutralidade, mas como, se a premissa é que toda dor masculina é filha do patriarcado?

A masculinidade, herança biológica e evolutiva tanto quanto construção social, é reduzida a um monstro a ser exorcizado, ignorando a complexidade que Freud sabia habitar. A série reflete isso: o colapso dos adolescentes diante de revoluções sociais, progressismo, cultura woke e cancelamento, sem saber que papel desempenhar na sociedade. O homicídio cometido pelo garoto, na narrativa, é motivado por bullying sistemático – humilhação, assédio, exposição – e não por misoginia, como a psicóloga insiste em enquadrar. Essa distorção serve à narrativa de feminicídio, mas ignora os fatos, agravando a pena e comprometendo a justiça.

Toda abordagem que esvazia o sujeito vira caricatura de si mesma!

O Desfecho: Um Grito Sem Som

A cena final é um punhal. A média concluirá que o garoto é “louco” ou “agressivo”, mas ele é apenas um jovem que não foi ouvido. Escutar é arriscar-se ao desconhecido; ditar é algemar o outro ao script. Aqui, o script venceu. A câmera se afasta, revelando a psicóloga em derrota – e nós, com ela, sentindo o fracasso de uma abordagem que não compreende. Sua tentativa de provocar reações, como apontado por minha amiga, é válida em teoria, mas ao mudar abruptamente de uma postura “boazinha” para uma confrontação direta, ela o encurrala, distorce suas falas e confirma seu viés. Essa orientação para obter uma confissão contraria o objetivo da avaliação pericial, que deve priorizar uma compreensão técnica e contextualizada, não corroborar suspeitas prévias.

A solução? Ressuscitar o tripé esquecido:

  • A escuta buberiana, que encontra o “Tu” no outro.
  • A suspensão fenomenológica, que adia o julgamento.
  • A humildade epistemológica, que reconhece os limites do saber.

Sem isso,

o divã vira trincheira,

o terapeuta vira carrasco, e 

o paciente, uma baixa colateral.

Epílogo: O Divã como Farol

A atuação da psicóloga no episódio 3 de Adolescência expõe falhas técnicas e éticas que configuram uma prática inadequada em contexto forense. Como advogado, sinto que meu cliente – o garoto – recebeu um laudo enviesado, falho, portanto. Apesar de ficcional, a representação cinematográfica levanta questões cruciais sobre como uma sessão psicoterapêutica judicial não deve ser conduzida, sob pena de virar farsa.

A série, de forma irônica, cumpre um papel educativo ao ilustrar práticas que vão contra as diretrizes do Conselho Federal de Psicologia. Para os psicólogos, é um alerta: formação sólida, compromisso ético e adesão às normas técnicas são essenciais, sobretudo no sistema de justiça com adolescentes. O fracasso da personagem não é apenas dramático; é técnico – uma intervenção danosa por incapacidade de seguir princípios básicos da avaliação psicológica forense. Ela erra ao concentrar todas as estratégias em um único atendimento, ao reagir com medo e desconforto desproporcionais, e ao abandonar o jovem abruptamente, sem considerar o impacto de suas vulnerabilidades expostas.

Queremos psicólogos que tragam não apenas diplomas, mas marcas de quem já refletiu profundamente sobre si mesmo. Que prefiram o desconforto do silêncio à superficialidade de discursos prontos. Que deixem o púlpito e a militância – que não precisa ser histérica – para eventos próprios. Que compreendam que clinicar, mesmo em perícia, é iluminar a escuridão alheia, não incendiar sectariamente uma floresta em busca de incels.

A psicóloga da série não é uma vilã caricata – é um sintoma, um produto de academias que trocaram a ciência pela militância. Seu fracasso é sistêmico: quando a psicologia abdica de compreender para catequizar, o paciente sangra, e a civilização logo o segue. Até quando a misandria, disfarçada de antipatriarcalismo, continuará a ser pantomima pseudoacademicista, reprimindo o masculino legítimo em nome de engenharias sociais? Quando o divã, livre do tribunal de certezas, voltará a ser farol em noites de naufrágio? Concluo com a impressão de que a psicóloga fechou os olhos em lágrimas, murmurando: “Fiz o que era preciso.” Uma reza à cartilha doutrinária.

Conclusão: A Busca por uma Justiça Sem Viés Ideológico

Como advogado, analisando este caso à luz da legislação brasileira, entendo que a acusação de misoginia como motivação para o crime – o que configuraria feminicídio na Legislação Brasileira – não se sustenta pelos fatos apresentados. Segundo a Lei 13.104/2015, feminicídio é o homicídio praticado “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”, que envolve menosprezo ou discriminação à condição feminina. O que vemos na série, que é britânica, entretanto, é um adolescente profundamente afetado por bullying sistemático, cuja reação violenta, ainda que absolutamente condenável, não demonstra clara motivação de gênero, por mais que tenha sido exposto a conteúdo e sites misóginos.

A psicóloga, ao induzir o adolescente a confirmar uma narrativa de misoginia, serve inadvertidamente aos interesses persecutórios do Estado. No Brasil, isso seria uma busca pela qualificadora do feminicídio – com pena mais severa, de 12 a 30 anos. Este viés compromete a imparcialidade que deveria nortear sua avaliação. Como defensor, eu impugnaria este laudo pericial apontando o “viés contextual” e o “viés de confirmação”, evidenciados quando a profissional parte de premissas pré-estabelecidas em vez de construir sua análise a partir da escuta genuína.

A impugnação se fundamentaria na identificação de inconsistências metodológicas e falhas na neutralidade exigida pela Resolução CFP nº 9/2018, solicitando ao Conselho Federal de Psicologia um parecer sobre a conduta da profissional, que parece contrariar o Artigo 2º do Código de Ética, que veda induzir a convicções ideológicas e praticar discriminação.

Meu papel como advogado não é isentar o réu de responsabilidade, mas garantir que a justiça seja aplicada sem distorções ideológicas. Que ele responda pelo que de fato cometeu – homicídio –, nem mais nem menos. A qualificadora do feminicídio representaria uma punição desproporcional aos fatos demonstrados.

Quanto à escola, cabe questionar: a instituição tinha conhecimento do bullying sofrido pelo adolescente? Em caso positivo, quais medidas preventivas foram implementadas? Qual a responsabilidade da Escola Pública e Privada diante dessa omissão? A Lei 13.185/2015 estabelece que “é dever do estabelecimento de ensino assegurar medidas de conscientização, prevenção, diagnose e combate à violência e à intimidação sistemática”. A escola que ignora sinais de bullying pode ser responsabilizada pela omissão que contribuiu para o desfecho trágico.

Este caso demonstra como a busca por narrativas ideologicamente convenientes pode comprometer a análise técnica e, consequentemente, a justiça. A psicologia forense, assim como o direito, deve servir à verdade factual, não a agendas preconcebidas. O adolescente deve ser responsabilizado pelo homicídio que cometeu, mas a adição de qualificadoras motivadas por viés ideológico apenas compromete a legitimidade do próprio sistema de justiça que pretendemos defender.

Referências

  • ADOLESCÊNCIA. Direção: Steven Mackintosh. Produção: Nick Shindler. Reino Unido: Channel 4, 2023. Disponível em: https://www.netflix.com/br/title/81608741. Acesso em: 04 mai. 2025.
  • BRASIL. Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 mar. 2015.
  • BRASIL. Lei nº 13.185, de 6 de novembro de 2015. Institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 nov. 2015.
  • BUBER, M. Eu e Tu. Tradução de Newton Aquiles Von Zuben. 10. ed. São Paulo: Centauro, 2012.
  • CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução CFP nº 08/2010. Dispõe sobre a atuação do psicólogo como perito e assistente técnico no Poder Judiciário. Brasília: CFP, 2010.
  • CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução CFP nº 31/2022. Regulamenta a avaliação psicológica. Brasília: CFP, 2022.
  • CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Código de Ética Profissional do Psicólogo. Brasília: CFP, 2005.
  • CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório sobre laudos de família. Brasília: CNJ, 2024.
  • FREUD, S. Luto e Melancolia. In: FREUD, S. Obras completas. v. 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 170-194.
  • INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Relatório sobre tipificação automática de feminicídio. Brasília: IPEA, 2023.
  • THE WALL. Pink Floyd. Direção: Alan Parker. Produção: Alan Marshall. Reino Unido: Metro-Goldwyn-Mayer, 1982.
  • UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Pesquisa sobre diagnósticos e agendas sociais. São Paulo: USP, 2024.
  • WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

 

sexta-feira, dezembro 27, 2024

2024 - o ano em que me tornei pai de gêmeas




Quando as últimas horas de um ano se dissipam, o tempo nos olha nos olhos e murmura: 


“Eis a tua chance de recomeçar!”.


Na transição entre o que foi e o que será, carregamos as marcas de um ciclo que se despede — algumas cicatrizes que nos lembram das batalhas vencidas, outras gravuras da alegria que nos transformaram. Para mim, 2024 foi mais do que um calendário que finda; foi uma forja em que a dor e o amor, a queda e a superação, o efêmero e o eterno, o erro e o acerto, o pecado e o perdão se encontraram.


Ao olhar para trás, vejo que 2024 não foi apenas um ano que vivi; foi um ano que me moldou. O tempo, este mestre imponderável, esculpiu em mim novos contornos, com paciência e severidade, novas marcas e cicatrizes, me lembrou que a vida é um fluxo contínuo e que cada escolha, cada renúncia, cada erro, cada acerto é uma pincelada em nossa tela. Ele avança implacável, derramando-se sobre nós como um rio que jamais repete suas águas. E nós, pequenas embarcações flutuando nesse fluxo, temos apenas duas escolhas: resistir ao inevitável ou aprender a navegar com propósito. Em cada amanhecer, somos convocados a escolher entre a paralisia do passado, a ansiedade do futuro ou a plenitude do presente.


Em 2024, vi que ser inteiro é ser vulnerável; e vi que amar é um risco, mas também pode ser o maior de nossos acertos. O nosso Oleiro nos chama a cada instante, não para sermos os mesmos, mas para reconhecermos que somos obra inacabada, talhados pelo vento das escolhas e pelo fogo das circunstâncias.


No palco da vida, cada ano nos oferece, ainda que involuntariamente, a possibilidade de um roteiro novo. Alguns capítulos nos ensinam sobre a fragilidade e a força. Este ano, meu corpo foi desafiado a resistir: dengue, pneumonia, uma cirurgia para remover algo que não foi apenas a despedida de algo físico, mas um símbolo do que precisava ser deixado para trás. O peso das internações, a insistência da febre, o amargo dos medicamentos, a fragilidade revelada em uma cama de hospital — tudo isso foi lição e testemunho. Este foi o ano em que menos dormi em minha vida. Cada amanhecer carregava em si a força da resiliência e a promessa de um novo que renascia.


Ao mesmo tempo, 2024 trouxe uma primavera inesquecível, talvez a mais sublime da minha existência. Aline Louyse e Aylla Lianna, minhas filhas gêmeas, chegaram como duas estrelas cadentes iluminando a noite da minha alma. Aline, com seu olhar curioso que a tudo observa, mas que com esses mesmos olhos também sorri, parece já flertar com as luzes da vida; Aylla, mais introspectiva, guarda sua alegria como um tesouro para aqueles que a conquistam, sendo a nossa caçulinha, ainda que por dois minutos de diferença, ela se entrega às luzes que a envolve. Elas são poesia viva, escritas no idioma universal do amor, uma parecida mais com a mãe e outra mais parecida com o pai.


"Pai"... Este ano também ouvi não só muitas vezes essa palavra em referência à mim, como também, pela primeira vez, ouvi uma de minhas filhas dizer: "papa", enquanto me chama, empolgada em amor, como seu eu fosse a melhor pessoa do mundo para ela! Enquanto a outra, por sua vez, chama pela "mãmã", pois sua mãe é a única coisa nesse mundo que realmente importa.


Ser pai pela primeira vez, e de duas meninas tão únicas e especiais como Aline e Aylla, é como descobrir que o coração se expande em dobro, aprendendo que a paternidade é um ato constante de se perder no amor para se reencontrar inteiro, como em um propósito divino prescrito nas estrelas por aqu'Ele que é Eterno.


E Sand , educadora e mãe acima de qualquer expectativa, entregue de corpo e alma, minha companheira, cuidou de mim durante todo o tempo em que adoeci, mesmo quando, por vezes, ela própria estava doente, com duas filhas recém-nascidas para cuidar e amamentar. Em minha fraqueza, ela foi a minha fortaleza, revelando ainda mais de sua beleza ao assumir o papel de esposa e mãe com a graça de quem transforma o ordinário em extraordinário. Ao lado dela, a casa que construímos é mais do que um abrigo — é um templo de risos, aprendizados, respeito e admiração mútuos, cumplicidade, compreensão e fé.


Meu trabalho na William Frezze Advocacia foi um espelho este ano. Enfrentar a balança da justiça é enfrentar também o reflexo de quem somos. Cada causa que defendi não foi apenas um processo jurídico; foi um lembrete de que lutar por justiça é lutar por humanidade. Ser a face da William Frezze Advocacia é carregar a responsabilidade de um nome que preza pela integridade e pela representação 'ius postulandi'. Em cada contrato firmado, em cada consulta, respiro o orgulho de liderar um escritório que é extensão de quem sou.


Que 2025 seja como uma safra de vinho novo, fermentado na sabedoria de quem sabe que o passado ensina, mas é o presente que se vive. Que sejamos odres novos para receber o espírito de transformação. Que cada dia seja uma página a ser escrita, uma chance de sermos melhores. Que seja como um campo fértil, pronto para receber as sementes de nossos sonhos e esforços. Que eu possa ser ainda mais presente para aqueles que amo, mais sábio em minhas decisões e mais humano em minhas relações. Que eu continue abraçando o presente como um tesouro, aprendendo com o passado e construindo o futuro com as mãos firmes de quem acredita no que faz.


Eu posso dizer que em 2024, não fui apenas espectador do tempo; fui coautor de uma história que carregarei como legado.


Que em 2025, tenhamos sabedoria para escolher o presente — esse raro e frágil tesouro — como o único palco onde a vida realmente acontece.


Afinal, não somos apenas cronômetros de horas vividas, mas arquitetos de significados. Que cada escolha seja mais do que uma decisão prática; que seja um ato de fé. Que cada renúncia carregue em si a nobreza de quem entende que abrir mão também é uma forma de ganhar. Que cada sorriso seja genuíno, cada lágrima honesta, e cada abraço, uma ponte entre almas. Que não nos faltem palavras para agradecer, coragem para recomeçar e leveza para seguir. Porque o tempo pode até ser implacável, mas o que fazemos com ele é eternamente nosso.


À minha família, amigos e clientes, não apenas um “feliz ano novo”, mas um desejo profundo: que encontremos na vida a beleza do inesperado, a força no amor e a paz na conexão humana. E que, ao final de cada dia, possamos olhar para trás e dizer:


“Fiz valer a pena”.


Vamos juntos, com coragem e esperança, pintar 2025 com as cores da alma.


Feliz Ano Novo!


— William Frezze