sábado, setembro 07, 2024

Resenha: "Luck and Strange", de David Gilmour

Após sete longos anos desde seu último lançamento, David Gilmour retorna com o álbum Luck and Strange, lançado em 6 de setembro de 2024. Gilmour, agora com a maturidade de seus 78 anos, nos entrega um trabalho que, de forma inequívoca, reflete a aceitação da passagem do tempo e a serenidade que vem com a velhice. Produzido em colaboração com Charlie Andrew, o álbum é uma coleção intimista e multifacetada, que mergulha tanto nas suas influências passadas quanto nas novas direções experimentais. Vamos analisar faixa a faixa para entender como Gilmour equilibra nostalgia e inovação.


Black Cat  

Abrindo o álbum, Black Cat é um prelúdio atmosférico, com 1 minuto e 32 segundos de uma beleza melancólica. O sintetizador que dá início à faixa logo é interrompido por um piano introspectivo, criando uma sensação de tristeza. É impossível não associar essa peça instrumental com Cluster One, de The Division Bell. Gilmour utiliza seu inconfundível toque de guitarra para suavizar o tom sombrio, embora a curta duração da faixa a deixe com um gosto de "quero mais". Poderia facilmente ter se desenvolvido em algo épico, mas sua brevidade dá o tom minimalista e contido do álbum.


Luck and Strange  

A faixa-título, por sua vez, mostra Gilmour abraçando as limitações de sua voz envelhecida, o que, curiosamente, adiciona uma profundidade emocional maior à sua performance. A reminiscência de Barn Jams de Wright é evidente, e a orquestração que permeia a faixa adiciona um elemento quase sinfônico, criando uma sensação de grandeza. Destaque para o órgão, que relembra os dias áureos de Richard Wright, e para o momento em que a vulnerabilidade vocal de Gilmour torna-se evidente, especialmente quando ele ousa ir além de sua zona de conforto, subindo tons que já não domina como antes. A aceitação dessa fragilidade é tocante e autêntica, capturando o espírito do rock em sua forma mais pura.


The Piper's Call  

Esta é a faixa mais difícil de digerir no início. Com uma cadência e ritmo que parecem desajeitados nos primeiros minutos, The Piper’s Call finalmente encontra sua identidade após a metade, quando a orquestra entra em cena. A transição para um solo de guitarra exuberante no final redime a faixa, mas o início hesitante pode afastar alguns ouvintes menos pacientes. Gilmour nos convida a persistir, e somos recompensados com um crescendo instrumental que prova que, apesar de seus altos e baixos, ele ainda tem a capacidade de nos surpreender.


Single Park  

Single Park é um dos momentos mais sublimes de Luck and Strange. A faixa é cercada por uma aura angelical, com vocais de apoio que elevam a melodia a uma dimensão espiritual. A reflexão sobre a mortalidade e a transcendência permeiam a letra, enquanto a instrumentação é impecável. As camadas de guitarra e teclado criam um cenário sonoro quase sacro. É uma composição que toca a alma, sendo ao mesmo tempo uma meditação musical e um testamento da maestria de Gilmour como compositor.


Vita Brevis  

Com apenas 42 segundos, Vita Brevis atua como um interlúdio delicado e etéreo. A harpa, acompanhada pela slide guitar, evoca uma atmosfera quase celestial. Embora breve, a peça deixa uma marca duradoura, e é impossível não desejar que ela tivesse se estendido por mais alguns minutos. No entanto, sua curta duração a torna uma peça de transição perfeita, levando-nos ao próximo ato com uma suavidade quase imperceptível.


Between Two Points  

Aqui, Romany Gilmour, filha de David, faz sua participação especial, tanto nos vocais quanto na harpa. A faixa tem um toque mais íntimo, e Romany, embora não seja uma vocalista com técnicas impressionantes, entrega uma performance vulnerável e doce. Sua voz é uma brisa fresca, contrastando com a experiência e o peso emocional de seu pai. O solo de guitarra ao final, mais bluesista, adiciona uma nova camada de profundidade à faixa, mostrando que Gilmour ainda sabe como explorar nuances emotivas através de suas cordas.


Dark and Velvet Nights  

Uma surpresa no álbum, Dark and Velvet Nights inicia com um riff que logo transita para um groove de R&B, algo incomum no repertório de Gilmour. O órgão pulsante ao fundo, combinado com uma guitarra poderosa, cria uma faixa energética e rítmica, que destoa positivamente das demais. Esse flerte com diferentes gêneros é um indicativo da versatilidade de Gilmour e sua disposição em continuar explorando territórios sonoros, mesmo em um ponto tão tardio da carreira.


Sings  

Uma das faixas mais introspectivas e românticas do álbum, Sings é uma homenagem evidente à esposa de Gilmour, Polly Samson. A letra, carregada de um romantismo rarefeito em sua discografia, transborda carinho e intimidade. A participação de seu filho em um trecho gravado no final adiciona um toque familiar que complementa a essência pessoal dessa faixa. Musicalmente, é menos complexa, mas a simplicidade de sua estrutura reflete a honestidade das emoções que ela carrega.


Scattered  

Encerrando o álbum com maestria, Scattered é talvez a faixa mais "Pink Floydiana" de todas. Com um piano que remete a Echoes, a faixa é uma reflexão profunda sobre a mortalidade e o fluxo ininterrupto do tempo. "Time is a tide that disobeys / And it disobeys me" é uma das linhas mais comoventes da canção, revelando a aceitação de Gilmour de que a vida, assim como a música, continua, indiferente a quem somos. O solo de guitarra é absolutamente deslumbrante, o melhor do álbum, e fecha o ciclo de maneira sublime, como uma despedida silenciosa de um dos maiores guitarristas da história do rock.


Conclusão  


Luck and Strange é mais do que um simples álbum; é o retrato de um ícone do rock que aceita a passagem do tempo com serenidade. David Gilmour, aos 78 anos, não tenta se reinventar ou impressionar tecnicamente, mas sim abraçar sua realidade atual — a de um homem que reconhece suas limitações vocais, físicas e emocionais, e ainda assim encontra beleza e significado nisso. Esse trabalho reflete uma aceitação madura da velhice, em que ele não apenas reconhece o fim de sua jornada como artista solo, mas celebra sua vida pessoal, sua família e os momentos simples que a idade traz. Vemos um Gilmour que valoriza o que realmente importa: o afeto, o legado familiar e a conexão emocional que perdura.


Ao invés de resistir ao envelhecimento, ele o acolhe, canalizando-o em um álbum repleto de introspecção, nostalgia e uma aceitação serena da mortalidade. Gilmour se despede, mas não com uma explosão épica; ele o faz com delicadeza, intimidade e uma mensagem clara: o verdadeiro triunfo está em viver plenamente, cercado por aqueles que amamos. E assim, Luck and Strange se torna um testamento não só da genialidade artística de Gilmour, mas de sua humanidade, que transcende o palco e ecoa na vida cotidiana.




Análise e Crítica Musical sobre Luck and Strange de David Gilmour,  por William Frezze.

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