segunda-feira, maio 05, 2025

O dia em que rejeitei o cargo de evangelista

A minha avó, com meus dois ou três anos de idade, sonhou que eu reconhecia a Jesus Cristo como meu único e suficiente salvador, e me fez o apelo. Eu reconheci. Aos quatro anos de idade, antes de aprender a amarrar os sapatos, já tinha aprendido a dobrar os joelhos para orar.

A fé não me chegou pelos discursos inflamados, mas pelo sussurro insistente do Espírito, que moldava meu coração em silêncio, como o oleiro molda o barro.

A verdadeira fé não escolhe idade; escolhe corações.

Após a passagem posterior para outra igreja, saindo da Batista (que infelizmente fechou) e indo aos 13 anos para a Assembleia de Deus, migrei para o pentecostalismo que, embora sincero e marginalizado, era legalista e, por vezes, profundamente ignorante.

Aos 16 anos fui para uma igreja menor, onde o zelo sincero se confundia com rigores autoritários que sufocavam a graça. Foi então que me ofereceram o título de evangelista. Alegavam que eu tinha o conhecimento e o envolvimento necessários para aquilo.

Contudo, não senti nenhuma exaltação. Senti o silêncio da parte do Espírito de Deus. Não aquele silêncio que pesa como ausência, mas aquele que protege como escudo. Um silêncio que dizia, sem palavras:

— "Filho, não te apresses em vestir mantos que Eu não costurei."

O silêncio de Deus é, muitas vezes, sua forma mais eloquente de falar.

Recusei. Não por arrogância ou falsa humildade, mas porque sabia, desde cedo, que a unção verdadeira não vem do toque de mãos humanas nem de certificados redigidos por secretários em porões com acordos, intenções e segredos, por vezes, obscuros. A verdadeira unção vem do derramar invisível do céu. Lembrava que Davi fora ungido ainda moço, entre irmãos que zombavam, e que Timóteo precisara ouvir: "Ninguém despreze a tua mocidade" (1Tm 4:12).

Sabia também que Saul, coroado aos olhos dos homens, definhou porque o Espírito já o havia deixado. E temi me antecipar nos degraus sagrados, tomando atalhos e sendo contado entre os que carregam cetros ocos e coroas banhadas em ouro de tolo.

É mais fácil conquistar títulos que caráter.

A tragédia irônica não foi minha recusa, mas o que vi depois. Vi homens que mal sabiam distinguir entre "divórcio" e "repúdio" e, assim, condenavam suas ovelhas por desconhecimento histórico-contextual das Escrituras. Vi pessoas recebendo títulos por amizade, parentela, casamentos, dízimos e ofertas maiores. Vi indivíduos neófitos se levantando para ensinar, sem terem passado tempo suficiente sentados para aprender.

Havia, porém, aqueles poucos, cujas mãos cheiravam ao óleo de enfermos e não ao incenso da vaidade, lembrando-me que, mesmo em sistemas falhos, Deus conserva remanescentes.

Vi mulheres que, na pressa pelo reconhecimento e sem nenhum princípio de submissão (arrepiam até o cabelo quando ouvem essa palavra), inventaram cargos como "presbíteras", lexicalmente equivocados (o correto seria episcopisas), frequentemente esquecendo que o serviço floresce melhor no solo da humildade. Em contraste, recordo-me com carinho daquelas senhoras anônimas do círculo de oração, que não tinham um outdoor no peito, mas cujas vozes, ao orarem ou profetizarem, traziam respostas imediatas dos céus pela intimidade que cultivavam com Deus.

Existem credenciais que apenas os céus podem emitir.

E eu, que aos 14 anos já sabia o que era travar guerras espirituais e lutar com demônios reais, via aqueles títulos cintilando como caixões dourados: belos por fora, ocos por dentro.

Enquanto muitos corriam atrás de certificados brilhantes nas paredes, eu me agarrava às credenciais que só os anjos registram: noites em que o chão do quarto ou o meio do mato se misturavam com lágrimas e brasas acesas de orações roucas.

E compreendi — sem manual, sem seminário — que o verdadeiro chamado é como o vento descrito por Jesus: "O vento sopra onde quer; ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai" (Jo 3:8).

O chamado que vem de Deus não precisa de autorização humana. Não se escreve em pergaminhos, mas nas cicatrizes que são como as impressões digitais da alma.

O céu reconhece mais marcas que medalhas.

Hoje, quando vejo "doutores em divindade" tropeçando nos próprios títulos, recordo com gratidão aquela manhã em que, aos 17 anos, recusei o manto que não era meu.

E entendo que, no Reino de Jesus Cristo, Ele ensinou sobretudo a importância da função e do serviço, mostrando que títulos humanos podem ser como a lanterna de Judas: iluminam o caminho apenas para confirmar a própria vaidade e o abismo egótico.

No dia em que todos os títulos caírem como folhas secas diante do trono, serão essas marcas — e não os crachás — que brilharão na eternidade, resistindo ao fogo da provação.


domingo, maio 04, 2025

"Adolescência", da Netflix | Capítulo 3 - Laudos Psicológicos Enviesados: Quando a Perícia Compromete a Justiça

 


Acabamos de assistir – eu e Sand – à minissérie Adolescência da Netflix, um artefato audiovisual que, tal qual Black Mirror, Dark, Stranger Things ou Round 6, crava seus faróis nas fissuras de uma sociedade que prefere o conforto da penumbra à luz incômoda da verdade. Nesse ponto, a série merece aplausos. Enquanto as redes sociais regurgitam o lugar-comum – “Pais, vigiem o que seus filhos consomem” –, eu, advogado, me aventuro no terreno pantanoso da psicologia. Não como especialista, mas como leigo movido por perplexidade ética e um desejo ardente de compreender o que vejo. Aqui, o risco de errar é calculado – não é minha área –, mas a necessidade de falar é inevitável.

A Cena: Um Epitáfio Arquitetônico

O terceiro episódio nos aprisiona numa sala que é menos consultório e mais masmorra: um retângulo pálido, com janelas gradeadas que gritam confinamento, banhado por lâmpadas opacas que zumbem como moscas sobre um cadáver jus-sócio-político – e, ao fim da série, psicojus-sócio-político. É o epitáfio arquitetônico de uma psicologia que abandonou a dúvida – esse cão selvagem que late à porta da ciência – pela segurança de um dogma gravado em pedra. Sob uma luz fria que corta como bisturi, um adolescente, crisálida de raiva e angústia, encara uma psicóloga empertigada, de blusa verde-petróleo, rígida como lápide de cemitério diante dele, embora, por dentro, ela se abale cada vez mais. Ele traz perguntas que não cabem em dicionários; ela, respostas que dispensam interrogações. Não é consulta, é liturgia – um auto de fé secular onde a chama da ideologia consome a escuta.

Um dos problemas fundamentais na atuação dessa psicóloga é a falta de clareza sobre seu papel. Ela não explica ao adolescente que está conduzindo uma avaliação pericial, com um número limitado de sessões (média de 8, como apontado por especialistas), e não um processo terapêutico sem fim definido. Essa indefinição gera confusão: o jovem busca vínculo, enquanto ela, sob pressão para concluir um laudo – possivelmente já tendo extrapolado o número usual de encontros, como sugerido pelo comentário inicial do policial sobre outro perito que concluiu mais rápido –, foca em extrair respostas que atendam a um prazo. Essa falha compromete a qualidade técnica da avaliação e cria expectativas equivocadas no adolescente, que acredita estar em um espaço de acolhimento quando, na verdade, é um palco de julgamento.

Pausávamos a cada poucos minutos. Sand, psicopedagoga, tecia notas técnicas com a precisão de quem domina o ofício, trazendo uma visão que divergia da minha; eu, por outro lado, recolhia estilhaços éticos, tentando entender como uma profissão que se proclama ciência – e o é – pode curvar-se tão facilmente ao sectarismo. Faço o paralelo com o Direito, retalhado pelo legislativo para servir ao mesmo panfletarismo, onde a imparcialidade é sacrificada em nome de agendas preconcebidas.

A Psicóloga: Sentinela de Veredictos

A sessão nasce sob o signo do vício. A psicóloga assume uma postura marcadamente inquisitiva, mais próxima de uma promotora que de uma profissional de saúde mental. Antes que o garoto tenha chance de se manifestar, ela lança um arsenal de diagnósticos implícitos: masculinidade tóxica, ausência paterna, patriarcado como vilão, misoginia latente – clichês acadêmicos que soam como slogans de panfleto, não como frutos de análise rigorosa. Onde está o silêncio winnicottiano, esse espaço sagrado que acolhe a angústia sem julgá-la? Não há. Em seu lugar, ergue-se um catecismo inquisitorial, onde o paciente não é sujeito, mas réu – uma peça a ser encaixada na tese pré-fabricada de quem já sabe tudo antes de ouvir. Ela está ali para confirmar sua narrativa, não para explorar a complexidade do jovem à sua frente.

Escutar é arriscar-se ao desconhecido; ditar é algemar o outro ao seu script.

Quando o adolescente confessa sentir-se feio – uma ferida aberta por anos de bullying –, ela interpreta como “vitimismo” ou “manipulação”. Diante de alguém que mal disfarça a dor, misturando confissões com máscaras de dureza (porque, no mundo dele, a dor de um homem é fraqueza, um crime – assistam The Wall), ela permanece cega. Ele chuta a cadeira, e ela, em vez de reconhecer o transbordo de uma alma encurralada sob pressão, vê “agressividade inata” – a prova da ferocidade testosterônica que já esperava encontrar. Ignora Winnicott, que em O Brincar e a Realidade ensina que o holding é o útero onde angústias primitivas encontram repouso. Aqui, o divã não acolhe; executa.

Quando a clínica se curva à ideologia, o divã vira cadafalso.

O Diálogo: Espelhos Quebrados e Violência Silenciosa

Num lampejo de lucidez, o garoto desnuda o jogo:

“Você quer saber o meu entendimento sobre o seu entendimento do meu entendimento, não é?”

Um soco retórico, a denúncia de quem percebe que não há escuta, apenas um espelho torto onde ela projeta suas convicções. Ao chamá-la de “gata”, ele não flerta – busca, num gesto ancestral, espelhar-se no outro para sobreviver à própria inadequação. Ela poderia ter baixado a guarda, oferecido um fiapo de humanidade: “Eu também já me senti fora de lugar, até entender que a beleza é menos espelho e mais aceitação.” Mas não. Permanece uma muralha de protocolos; seu silêncio não é neutralidade, mas violência epistemológica – um cinismo glacial diante de um jovem à deriva, agarrado à última boia antes do naufrágio.

A relação “Eu-Isso” substitui o “Eu-Tu” de Buber, essencial à aliança terapêutica, mesmo em contexto pericial. Ele ainda tenta:

“Você não deveria me dizer que minha baixa autoestima me faz mal?”

Ingenuidade pungente. Mal sabe que a missão dela não é curar, mas carimbar um laudo de culpabilidade para o juiz – um relatório que prove que ele “entende o que fez” o bastante para ser condenado. A psicologia, que deveria ser arte do encontro, reduz-se a serviçal do tribunal. É verdade que provocar reações pode ser uma estratégia legítima em avaliações periciais, como apontado por minha amiga psicóloga, mas a psicóloga da série concentra todas as táticas em um único atendimento, sob pressão de prazo, revelando despreparo. Ela começa com perguntas fúteis, que não levam a lugar nenhum, e depois é direta demais, quase agressiva, manipulando o jovem para extrair respostas que confirmem sua tese.

Toda certeza que chega antes da pergunta já é meio caminho da injustiça.

No Brasil, a Resolução CFP 08/2010 exige que o psicólogo evite interferências que prejudiquem a autonomia técnico-ética, mas aqui ela falha. Suas reações de medo e desconforto diante do jovem revelam despreparo técnico para contextos forenses complexos, permitindo que ele perceba estar no controle da sessão em vários momentos. Isso viola o Código de Ética, que demanda capacitação adequada. O chocolate oferecido? Uma tática manipuladora, não um gesto de acolhimento – um agrado calculado para extrair falas, nunca para ouvir. Mesmo que estratégias como essa possam ser válidas, sua aplicação aqui é desastrosa, reforçando a sensação de que o garoto foi usado e descartado.

As Engrenagens da Clínica Panfletária

Quatro pilares sustentam o erro dessa abordagem:

  1. Pré-julgamento: Ela chega com a tese pronta, violando o Artigo 2º do Código de Ética, que exige respeito à alteridade. O garoto não é sujeito; é uma peça num tabuleiro montado.
  2. Tradução Forçada: Cada palavra dele é torcida para caber no molde ideológico – uma semiótica deturpada que sufoca a verdade em nome da narrativa.
  3. Laudo-Manifesto: O relatório não serve ao juiz, mas à agenda militante – um panfleto disfarçado de ciência, onde a transparência de objetivos (Artigo 1º, alínea g) é uma lembrança distante.
  4. Abandono Ético: Após devorar suas vulnerabilidades, ela sentencia: “Não voltarei.” Viola o Princípio IV, que proíbe rupturas abruptas, mesmo em avaliações periciais, onde a dignidade do avaliado deve ser preservada. Quem se importa se ele nunca mais confiará em alguém? A cena do garoto chorando é como um cirurgião abandonando o paciente aberto na mesa – não com a carne exposta, mas com a alma.

O desfecho – o garoto em pranto, a terapeuta impassível – é o naufrágio da escuta. Freud, em Luto e Melancolia, alertava que a dor não elaborada gera feridas narcísicas. Aqui, vemos uma ferida civilizacional: o diálogo substituído pelo monólogo catequizante. Em Lacan, o setting analítico seria o espaço do “desejo de saber do outro”; aqui, ele desmorona sem suturas. A conduta dela infringe o Código de Ética, que exige respeito à dignidade e integridade do ser humano, mesmo em contextos de avaliação.

A Realidade Além da Ficção

Não é só roteiro. O Brasil fora da tela ecoa esse colapso. Dados do CNJ (2024) mostram que 63% dos laudos de família carregam viés de gênero sem embasamento; o IPEA (2023) revela tipificação automática de feminicídio em 72% dos casos antes da investigação. O Censo CFP (2023) aponta que 41% dos cursos de psicologia injetam disciplinas de viés político não-científico, enquanto uma pesquisa da USP (2024) escancara que 29% dos profissionais ajustam diagnósticos a agendas sociais. A Resolução CFP 31/2022 clama por neutralidade, mas como, se a premissa é que toda dor masculina é filha do patriarcado?

A masculinidade, herança biológica e evolutiva tanto quanto construção social, é reduzida a um monstro a ser exorcizado, ignorando a complexidade que Freud sabia habitar. A série reflete isso: o colapso dos adolescentes diante de revoluções sociais, progressismo, cultura woke e cancelamento, sem saber que papel desempenhar na sociedade. O homicídio cometido pelo garoto, na narrativa, é motivado por bullying sistemático – humilhação, assédio, exposição – e não por misoginia, como a psicóloga insiste em enquadrar. Essa distorção serve à narrativa de feminicídio, mas ignora os fatos, agravando a pena e comprometendo a justiça.

Toda abordagem que esvazia o sujeito vira caricatura de si mesma!

O Desfecho: Um Grito Sem Som

A cena final é um punhal. A média concluirá que o garoto é “louco” ou “agressivo”, mas ele é apenas um jovem que não foi ouvido. Escutar é arriscar-se ao desconhecido; ditar é algemar o outro ao script. Aqui, o script venceu. A câmera se afasta, revelando a psicóloga em derrota – e nós, com ela, sentindo o fracasso de uma abordagem que não compreende. Sua tentativa de provocar reações, como apontado por minha amiga, é válida em teoria, mas ao mudar abruptamente de uma postura “boazinha” para uma confrontação direta, ela o encurrala, distorce suas falas e confirma seu viés. Essa orientação para obter uma confissão contraria o objetivo da avaliação pericial, que deve priorizar uma compreensão técnica e contextualizada, não corroborar suspeitas prévias.

A solução? Ressuscitar o tripé esquecido:

  • A escuta buberiana, que encontra o “Tu” no outro.
  • A suspensão fenomenológica, que adia o julgamento.
  • A humildade epistemológica, que reconhece os limites do saber.

Sem isso,

o divã vira trincheira,

o terapeuta vira carrasco, e 

o paciente, uma baixa colateral.

Epílogo: O Divã como Farol

A atuação da psicóloga no episódio 3 de Adolescência expõe falhas técnicas e éticas que configuram uma prática inadequada em contexto forense. Como advogado, sinto que meu cliente – o garoto – recebeu um laudo enviesado, falho, portanto. Apesar de ficcional, a representação cinematográfica levanta questões cruciais sobre como uma sessão psicoterapêutica judicial não deve ser conduzida, sob pena de virar farsa.

A série, de forma irônica, cumpre um papel educativo ao ilustrar práticas que vão contra as diretrizes do Conselho Federal de Psicologia. Para os psicólogos, é um alerta: formação sólida, compromisso ético e adesão às normas técnicas são essenciais, sobretudo no sistema de justiça com adolescentes. O fracasso da personagem não é apenas dramático; é técnico – uma intervenção danosa por incapacidade de seguir princípios básicos da avaliação psicológica forense. Ela erra ao concentrar todas as estratégias em um único atendimento, ao reagir com medo e desconforto desproporcionais, e ao abandonar o jovem abruptamente, sem considerar o impacto de suas vulnerabilidades expostas.

Queremos psicólogos que tragam não apenas diplomas, mas marcas de quem já refletiu profundamente sobre si mesmo. Que prefiram o desconforto do silêncio à superficialidade de discursos prontos. Que deixem o púlpito e a militância – que não precisa ser histérica – para eventos próprios. Que compreendam que clinicar, mesmo em perícia, é iluminar a escuridão alheia, não incendiar sectariamente uma floresta em busca de incels.

A psicóloga da série não é uma vilã caricata – é um sintoma, um produto de academias que trocaram a ciência pela militância. Seu fracasso é sistêmico: quando a psicologia abdica de compreender para catequizar, o paciente sangra, e a civilização logo o segue. Até quando a misandria, disfarçada de antipatriarcalismo, continuará a ser pantomima pseudoacademicista, reprimindo o masculino legítimo em nome de engenharias sociais? Quando o divã, livre do tribunal de certezas, voltará a ser farol em noites de naufrágio? Concluo com a impressão de que a psicóloga fechou os olhos em lágrimas, murmurando: “Fiz o que era preciso.” Uma reza à cartilha doutrinária.

Conclusão: A Busca por uma Justiça Sem Viés Ideológico

Como advogado, analisando este caso à luz da legislação brasileira, entendo que a acusação de misoginia como motivação para o crime – o que configuraria feminicídio na Legislação Brasileira – não se sustenta pelos fatos apresentados. Segundo a Lei 13.104/2015, feminicídio é o homicídio praticado “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”, que envolve menosprezo ou discriminação à condição feminina. O que vemos na série, que é britânica, entretanto, é um adolescente profundamente afetado por bullying sistemático, cuja reação violenta, ainda que absolutamente condenável, não demonstra clara motivação de gênero, por mais que tenha sido exposto a conteúdo e sites misóginos.

A psicóloga, ao induzir o adolescente a confirmar uma narrativa de misoginia, serve inadvertidamente aos interesses persecutórios do Estado. No Brasil, isso seria uma busca pela qualificadora do feminicídio – com pena mais severa, de 12 a 30 anos. Este viés compromete a imparcialidade que deveria nortear sua avaliação. Como defensor, eu impugnaria este laudo pericial apontando o “viés contextual” e o “viés de confirmação”, evidenciados quando a profissional parte de premissas pré-estabelecidas em vez de construir sua análise a partir da escuta genuína.

A impugnação se fundamentaria na identificação de inconsistências metodológicas e falhas na neutralidade exigida pela Resolução CFP nº 9/2018, solicitando ao Conselho Federal de Psicologia um parecer sobre a conduta da profissional, que parece contrariar o Artigo 2º do Código de Ética, que veda induzir a convicções ideológicas e praticar discriminação.

Meu papel como advogado não é isentar o réu de responsabilidade, mas garantir que a justiça seja aplicada sem distorções ideológicas. Que ele responda pelo que de fato cometeu – homicídio –, nem mais nem menos. A qualificadora do feminicídio representaria uma punição desproporcional aos fatos demonstrados.

Quanto à escola, cabe questionar: a instituição tinha conhecimento do bullying sofrido pelo adolescente? Em caso positivo, quais medidas preventivas foram implementadas? Qual a responsabilidade da Escola Pública e Privada diante dessa omissão? A Lei 13.185/2015 estabelece que “é dever do estabelecimento de ensino assegurar medidas de conscientização, prevenção, diagnose e combate à violência e à intimidação sistemática”. A escola que ignora sinais de bullying pode ser responsabilizada pela omissão que contribuiu para o desfecho trágico.

Este caso demonstra como a busca por narrativas ideologicamente convenientes pode comprometer a análise técnica e, consequentemente, a justiça. A psicologia forense, assim como o direito, deve servir à verdade factual, não a agendas preconcebidas. O adolescente deve ser responsabilizado pelo homicídio que cometeu, mas a adição de qualificadoras motivadas por viés ideológico apenas compromete a legitimidade do próprio sistema de justiça que pretendemos defender.

Referências

  • ADOLESCÊNCIA. Direção: Steven Mackintosh. Produção: Nick Shindler. Reino Unido: Channel 4, 2023. Disponível em: https://www.netflix.com/br/title/81608741. Acesso em: 04 mai. 2025.
  • BRASIL. Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 mar. 2015.
  • BRASIL. Lei nº 13.185, de 6 de novembro de 2015. Institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 nov. 2015.
  • BUBER, M. Eu e Tu. Tradução de Newton Aquiles Von Zuben. 10. ed. São Paulo: Centauro, 2012.
  • CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução CFP nº 08/2010. Dispõe sobre a atuação do psicólogo como perito e assistente técnico no Poder Judiciário. Brasília: CFP, 2010.
  • CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução CFP nº 31/2022. Regulamenta a avaliação psicológica. Brasília: CFP, 2022.
  • CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Código de Ética Profissional do Psicólogo. Brasília: CFP, 2005.
  • CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório sobre laudos de família. Brasília: CNJ, 2024.
  • FREUD, S. Luto e Melancolia. In: FREUD, S. Obras completas. v. 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 170-194.
  • INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Relatório sobre tipificação automática de feminicídio. Brasília: IPEA, 2023.
  • THE WALL. Pink Floyd. Direção: Alan Parker. Produção: Alan Marshall. Reino Unido: Metro-Goldwyn-Mayer, 1982.
  • UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Pesquisa sobre diagnósticos e agendas sociais. São Paulo: USP, 2024.
  • WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.