Acabamos de assistir – eu e Sand – à minissérie Adolescência da Netflix, um artefato audiovisual que, tal qual Black Mirror, Dark, Stranger Things ou Round 6, crava seus faróis nas fissuras de uma sociedade que prefere o conforto da penumbra à luz incômoda da verdade. Nesse ponto, a série merece aplausos. Enquanto as redes sociais regurgitam o lugar-comum – “Pais, vigiem o que seus filhos consomem” –, eu, advogado, me aventuro no terreno pantanoso da psicologia. Não como especialista, mas como leigo movido por perplexidade ética e um desejo ardente de compreender o que vejo. Aqui, o risco de errar é calculado – não é minha área –, mas a necessidade de falar é inevitável.
A Cena: Um Epitáfio Arquitetônico
O terceiro episódio nos aprisiona numa sala que é menos consultório e mais masmorra: um retângulo pálido, com janelas gradeadas que gritam confinamento, banhado por lâmpadas opacas que zumbem como moscas sobre um cadáver jus-sócio-político – e, ao fim da série, psicojus-sócio-político. É o epitáfio arquitetônico de uma psicologia que abandonou a dúvida – esse cão selvagem que late à porta da ciência – pela segurança de um dogma gravado em pedra. Sob uma luz fria que corta como bisturi, um adolescente, crisálida de raiva e angústia, encara uma psicóloga empertigada, de blusa verde-petróleo, rígida como lápide de cemitério diante dele, embora, por dentro, ela se abale cada vez mais. Ele traz perguntas que não cabem em dicionários; ela, respostas que dispensam interrogações. Não é consulta, é liturgia – um auto de fé secular onde a chama da ideologia consome a escuta.
Um dos problemas fundamentais na atuação dessa psicóloga é a falta de clareza sobre seu papel. Ela não explica ao adolescente que está conduzindo uma avaliação pericial, com um número limitado de sessões (média de 8, como apontado por especialistas), e não um processo terapêutico sem fim definido. Essa indefinição gera confusão: o jovem busca vínculo, enquanto ela, sob pressão para concluir um laudo – possivelmente já tendo extrapolado o número usual de encontros, como sugerido pelo comentário inicial do policial sobre outro perito que concluiu mais rápido –, foca em extrair respostas que atendam a um prazo. Essa falha compromete a qualidade técnica da avaliação e cria expectativas equivocadas no adolescente, que acredita estar em um espaço de acolhimento quando, na verdade, é um palco de julgamento.
Pausávamos a cada poucos minutos. Sand, psicopedagoga, tecia notas técnicas com a precisão de quem domina o ofício, trazendo uma visão que divergia da minha; eu, por outro lado, recolhia estilhaços éticos, tentando entender como uma profissão que se proclama ciência – e o é – pode curvar-se tão facilmente ao sectarismo. Faço o paralelo com o Direito, retalhado pelo legislativo para servir ao mesmo panfletarismo, onde a imparcialidade é sacrificada em nome de agendas preconcebidas.
A Psicóloga: Sentinela de Veredictos
A sessão nasce sob o signo do vício. A psicóloga assume uma postura marcadamente inquisitiva, mais próxima de uma promotora que de uma profissional de saúde mental. Antes que o garoto tenha chance de se manifestar, ela lança um arsenal de diagnósticos implícitos: masculinidade tóxica, ausência paterna, patriarcado como vilão, misoginia latente – clichês acadêmicos que soam como slogans de panfleto, não como frutos de análise rigorosa. Onde está o silêncio winnicottiano, esse espaço sagrado que acolhe a angústia sem julgá-la? Não há. Em seu lugar, ergue-se um catecismo inquisitorial, onde o paciente não é sujeito, mas réu – uma peça a ser encaixada na tese pré-fabricada de quem já sabe tudo antes de ouvir. Ela está ali para confirmar sua narrativa, não para explorar a complexidade do jovem à sua frente.
Escutar é arriscar-se ao desconhecido; ditar é algemar o outro ao seu script.
Quando o adolescente confessa sentir-se feio – uma ferida aberta por anos de bullying –, ela interpreta como “vitimismo” ou “manipulação”. Diante de alguém que mal disfarça a dor, misturando confissões com máscaras de dureza (porque, no mundo dele, a dor de um homem é fraqueza, um crime – assistam The Wall), ela permanece cega. Ele chuta a cadeira, e ela, em vez de reconhecer o transbordo de uma alma encurralada sob pressão, vê “agressividade inata” – a prova da ferocidade testosterônica que já esperava encontrar. Ignora Winnicott, que em O Brincar e a Realidade ensina que o holding é o útero onde angústias primitivas encontram repouso. Aqui, o divã não acolhe; executa.
Quando a clínica se curva à ideologia, o divã vira cadafalso.
O Diálogo: Espelhos Quebrados e Violência Silenciosa
Num lampejo de lucidez, o garoto desnuda o jogo:
“Você quer saber o meu entendimento sobre o seu entendimento do meu entendimento, não é?”
Um soco retórico, a denúncia de quem percebe que não há escuta, apenas um espelho torto onde ela projeta suas convicções. Ao chamá-la de “gata”, ele não flerta – busca, num gesto ancestral, espelhar-se no outro para sobreviver à própria inadequação. Ela poderia ter baixado a guarda, oferecido um fiapo de humanidade: “Eu também já me senti fora de lugar, até entender que a beleza é menos espelho e mais aceitação.” Mas não. Permanece uma muralha de protocolos; seu silêncio não é neutralidade, mas violência epistemológica – um cinismo glacial diante de um jovem à deriva, agarrado à última boia antes do naufrágio.
A relação “Eu-Isso” substitui o “Eu-Tu” de Buber, essencial à aliança terapêutica, mesmo em contexto pericial. Ele ainda tenta:
“Você não deveria me dizer que minha baixa autoestima me faz mal?”
Ingenuidade pungente. Mal sabe que a missão dela não é curar, mas carimbar um laudo de culpabilidade para o juiz – um relatório que prove que ele “entende o que fez” o bastante para ser condenado. A psicologia, que deveria ser arte do encontro, reduz-se a serviçal do tribunal. É verdade que provocar reações pode ser uma estratégia legítima em avaliações periciais, como apontado por minha amiga psicóloga, mas a psicóloga da série concentra todas as táticas em um único atendimento, sob pressão de prazo, revelando despreparo. Ela começa com perguntas fúteis, que não levam a lugar nenhum, e depois é direta demais, quase agressiva, manipulando o jovem para extrair respostas que confirmem sua tese.
Toda certeza que chega antes da pergunta já é meio caminho da injustiça.
No Brasil, a Resolução CFP 08/2010 exige que o psicólogo evite interferências que prejudiquem a autonomia técnico-ética, mas aqui ela falha. Suas reações de medo e desconforto diante do jovem revelam despreparo técnico para contextos forenses complexos, permitindo que ele perceba estar no controle da sessão em vários momentos. Isso viola o Código de Ética, que demanda capacitação adequada. O chocolate oferecido? Uma tática manipuladora, não um gesto de acolhimento – um agrado calculado para extrair falas, nunca para ouvir. Mesmo que estratégias como essa possam ser válidas, sua aplicação aqui é desastrosa, reforçando a sensação de que o garoto foi usado e descartado.
As Engrenagens da Clínica Panfletária
Quatro pilares sustentam o erro dessa abordagem:
- Pré-julgamento: Ela chega com a tese pronta, violando o Artigo 2º do Código de Ética, que exige respeito à alteridade. O garoto não é sujeito; é uma peça num tabuleiro montado.
- Tradução Forçada: Cada palavra dele é torcida para caber no molde ideológico – uma semiótica deturpada que sufoca a verdade em nome da narrativa.
- Laudo-Manifesto: O relatório não serve ao juiz, mas à agenda militante – um panfleto disfarçado de ciência, onde a transparência de objetivos (Artigo 1º, alínea g) é uma lembrança distante.
- Abandono Ético: Após devorar suas vulnerabilidades, ela sentencia: “Não voltarei.” Viola o Princípio IV, que proíbe rupturas abruptas, mesmo em avaliações periciais, onde a dignidade do avaliado deve ser preservada. Quem se importa se ele nunca mais confiará em alguém? A cena do garoto chorando é como um cirurgião abandonando o paciente aberto na mesa – não com a carne exposta, mas com a alma.
O desfecho – o garoto em pranto, a terapeuta impassível – é o naufrágio da escuta. Freud, em Luto e Melancolia, alertava que a dor não elaborada gera feridas narcísicas. Aqui, vemos uma ferida civilizacional: o diálogo substituído pelo monólogo catequizante. Em Lacan, o setting analítico seria o espaço do “desejo de saber do outro”; aqui, ele desmorona sem suturas. A conduta dela infringe o Código de Ética, que exige respeito à dignidade e integridade do ser humano, mesmo em contextos de avaliação.
A Realidade Além da Ficção
Não é só roteiro. O Brasil fora da tela ecoa esse colapso. Dados do CNJ (2024) mostram que 63% dos laudos de família carregam viés de gênero sem embasamento; o IPEA (2023) revela tipificação automática de feminicídio em 72% dos casos antes da investigação. O Censo CFP (2023) aponta que 41% dos cursos de psicologia injetam disciplinas de viés político não-científico, enquanto uma pesquisa da USP (2024) escancara que 29% dos profissionais ajustam diagnósticos a agendas sociais. A Resolução CFP 31/2022 clama por neutralidade, mas como, se a premissa é que toda dor masculina é filha do patriarcado?
A masculinidade, herança biológica e evolutiva tanto quanto construção social, é reduzida a um monstro a ser exorcizado, ignorando a complexidade que Freud sabia habitar. A série reflete isso: o colapso dos adolescentes diante de revoluções sociais, progressismo, cultura woke e cancelamento, sem saber que papel desempenhar na sociedade. O homicídio cometido pelo garoto, na narrativa, é motivado por bullying sistemático – humilhação, assédio, exposição – e não por misoginia, como a psicóloga insiste em enquadrar. Essa distorção serve à narrativa de feminicídio, mas ignora os fatos, agravando a pena e comprometendo a justiça.
Toda abordagem que esvazia o sujeito vira caricatura de si mesma!
O Desfecho: Um Grito Sem Som
A cena final é um punhal. A média concluirá que o garoto é “louco” ou “agressivo”, mas ele é apenas um jovem que não foi ouvido. Escutar é arriscar-se ao desconhecido; ditar é algemar o outro ao script. Aqui, o script venceu. A câmera se afasta, revelando a psicóloga em derrota – e nós, com ela, sentindo o fracasso de uma abordagem que não compreende. Sua tentativa de provocar reações, como apontado por minha amiga, é válida em teoria, mas ao mudar abruptamente de uma postura “boazinha” para uma confrontação direta, ela o encurrala, distorce suas falas e confirma seu viés. Essa orientação para obter uma confissão contraria o objetivo da avaliação pericial, que deve priorizar uma compreensão técnica e contextualizada, não corroborar suspeitas prévias.
A solução? Ressuscitar o tripé esquecido:
- A escuta buberiana, que encontra o “Tu” no outro.
- A suspensão fenomenológica, que adia o julgamento.
- A humildade epistemológica, que reconhece os limites do saber.
Sem isso,
o divã vira trincheira,
o terapeuta vira carrasco, e
o paciente, uma baixa colateral.
Epílogo: O Divã como Farol
A atuação da psicóloga no episódio 3 de Adolescência expõe falhas técnicas e éticas que configuram uma prática inadequada em contexto forense. Como advogado, sinto que meu cliente – o garoto – recebeu um laudo enviesado, falho, portanto. Apesar de ficcional, a representação cinematográfica levanta questões cruciais sobre como uma sessão psicoterapêutica judicial não deve ser conduzida, sob pena de virar farsa.
A série, de forma irônica, cumpre um papel educativo ao ilustrar práticas que vão contra as diretrizes do Conselho Federal de Psicologia. Para os psicólogos, é um alerta: formação sólida, compromisso ético e adesão às normas técnicas são essenciais, sobretudo no sistema de justiça com adolescentes. O fracasso da personagem não é apenas dramático; é técnico – uma intervenção danosa por incapacidade de seguir princípios básicos da avaliação psicológica forense. Ela erra ao concentrar todas as estratégias em um único atendimento, ao reagir com medo e desconforto desproporcionais, e ao abandonar o jovem abruptamente, sem considerar o impacto de suas vulnerabilidades expostas.
Queremos psicólogos que tragam não apenas diplomas, mas marcas de quem já refletiu profundamente sobre si mesmo. Que prefiram o desconforto do silêncio à superficialidade de discursos prontos. Que deixem o púlpito e a militância – que não precisa ser histérica – para eventos próprios. Que compreendam que clinicar, mesmo em perícia, é iluminar a escuridão alheia, não incendiar sectariamente uma floresta em busca de incels.
A psicóloga da série não é uma vilã caricata – é um sintoma, um produto de academias que trocaram a ciência pela militância. Seu fracasso é sistêmico: quando a psicologia abdica de compreender para catequizar, o paciente sangra, e a civilização logo o segue. Até quando a misandria, disfarçada de antipatriarcalismo, continuará a ser pantomima pseudoacademicista, reprimindo o masculino legítimo em nome de engenharias sociais? Quando o divã, livre do tribunal de certezas, voltará a ser farol em noites de naufrágio? Concluo com a impressão de que a psicóloga fechou os olhos em lágrimas, murmurando: “Fiz o que era preciso.” Uma reza à cartilha doutrinária.
Conclusão: A Busca por uma Justiça Sem Viés Ideológico
Como advogado, analisando este caso à luz da legislação brasileira, entendo que a acusação de misoginia como motivação para o crime – o que configuraria feminicídio na Legislação Brasileira – não se sustenta pelos fatos apresentados. Segundo a Lei 13.104/2015, feminicídio é o homicídio praticado “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”, que envolve menosprezo ou discriminação à condição feminina. O que vemos na série, que é britânica, entretanto, é um adolescente profundamente afetado por bullying sistemático, cuja reação violenta, ainda que absolutamente condenável, não demonstra clara motivação de gênero, por mais que tenha sido exposto a conteúdo e sites misóginos.
A psicóloga, ao induzir o adolescente a confirmar uma narrativa de misoginia, serve inadvertidamente aos interesses persecutórios do Estado. No Brasil, isso seria uma busca pela qualificadora do feminicídio – com pena mais severa, de 12 a 30 anos. Este viés compromete a imparcialidade que deveria nortear sua avaliação. Como defensor, eu impugnaria este laudo pericial apontando o “viés contextual” e o “viés de confirmação”, evidenciados quando a profissional parte de premissas pré-estabelecidas em vez de construir sua análise a partir da escuta genuína.
A impugnação se fundamentaria na identificação de inconsistências metodológicas e falhas na neutralidade exigida pela Resolução CFP nº 9/2018, solicitando ao Conselho Federal de Psicologia um parecer sobre a conduta da profissional, que parece contrariar o Artigo 2º do Código de Ética, que veda induzir a convicções ideológicas e praticar discriminação.
Meu papel como advogado não é isentar o réu de responsabilidade, mas garantir que a justiça seja aplicada sem distorções ideológicas. Que ele responda pelo que de fato cometeu – homicídio –, nem mais nem menos. A qualificadora do feminicídio representaria uma punição desproporcional aos fatos demonstrados.
Quanto à escola, cabe questionar: a instituição tinha conhecimento do bullying sofrido pelo adolescente? Em caso positivo, quais medidas preventivas foram implementadas? Qual a responsabilidade da Escola Pública e Privada diante dessa omissão? A Lei 13.185/2015 estabelece que “é dever do estabelecimento de ensino assegurar medidas de conscientização, prevenção, diagnose e combate à violência e à intimidação sistemática”. A escola que ignora sinais de bullying pode ser responsabilizada pela omissão que contribuiu para o desfecho trágico.
Este caso demonstra como a busca por narrativas ideologicamente convenientes pode comprometer a análise técnica e, consequentemente, a justiça. A psicologia forense, assim como o direito, deve servir à verdade factual, não a agendas preconcebidas. O adolescente deve ser responsabilizado pelo homicídio que cometeu, mas a adição de qualificadoras motivadas por viés ideológico apenas compromete a legitimidade do próprio sistema de justiça que pretendemos defender.
Referências
- ADOLESCÊNCIA. Direção: Steven Mackintosh. Produção: Nick Shindler. Reino Unido: Channel 4, 2023. Disponível em: https://www.netflix.com/br/title/81608741. Acesso em: 04 mai. 2025.
- BRASIL. Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 mar. 2015.
- BRASIL. Lei nº 13.185, de 6 de novembro de 2015. Institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 nov. 2015.
- BUBER, M. Eu e Tu. Tradução de Newton Aquiles Von Zuben. 10. ed. São Paulo: Centauro, 2012.
- CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução CFP nº 08/2010. Dispõe sobre a atuação do psicólogo como perito e assistente técnico no Poder Judiciário. Brasília: CFP, 2010.
- CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução CFP nº 31/2022. Regulamenta a avaliação psicológica. Brasília: CFP, 2022.
- CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Código de Ética Profissional do Psicólogo. Brasília: CFP, 2005.
- CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório sobre laudos de família. Brasília: CNJ, 2024.
- FREUD, S. Luto e Melancolia. In: FREUD, S. Obras completas. v. 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 170-194.
- INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Relatório sobre tipificação automática de feminicídio. Brasília: IPEA, 2023.
- THE WALL. Pink Floyd. Direção: Alan Parker. Produção: Alan Marshall. Reino Unido: Metro-Goldwyn-Mayer, 1982.
- UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Pesquisa sobre diagnósticos e agendas sociais. São Paulo: USP, 2024.
- WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.